Apoie o holofote!
Busca Menu

MÚSICA

Há dois anos Coro Luther King perdia maestro Martinho Lutero, regente que enfrentou ditadura

24 de março de 2022 - 08h01

O primeiro grande concerto do maestro Martinho Lutero

 

Por José Luiz Del Roio

Há dois anos perdemos o grande músico revolucionário, vítima da Covid-19. Faz parte daquele rol de personagens absolutamente imprescindíveis. Falar sobre sua obra é tarefa ímpar, da qual não sou absolutamente capaz.

Porém, fui seu amigo e me apraz contar um episódio para homenageá-lo. O jovem Martinho, depois de criar o Coro Luther King, na cidade de São Paulo, nas trevas da ditadura, foi para o exterior e terminou em Moçambique, enquanto as chamas finais da guerra de libertação anticolonial ainda ardiam.

Por lá ficou 10 anos, estudando as raízes da música africana. Posteriormente, deslocou-se para a Hungria, para terminar seu curso de maestro. Ali conheceu um gigante da música, o maestro italiano Luigi Nono, que o convidou para trabalhar consigo.

E assim Martinho chegou a Milão. Tinha uma carta de apresentação para mim, escrita por amigos comuns. Depois de poucos meses, sua situação se complicou, pois Luigi Nono contraiu uma séria doença que o levaria à morte. O brasileiro teve que ir ensinar música para sobreviver.

Entre tantas outras coisas, encontrava-me empenhado na campanha contra os festejos que se preparavam na Europa, para comemorar a descoberta da América. Colaborava na realização de um grande seminário, na cidade de Florença, sobre a evangelização da América Latina. Entre os muitos convidados, viriam os brasileiros Darcy Ribeiro, o bispo negro José Maria Pires, conhecido com Don Pelé e o uruguaio Eduardo Galeano. 

Martinho seguia com empenho estas movimentações e me fez uma pergunta: onde é que fica a música nisso tudo? Quem financiava o encontro internacional eram os entes governamentais de Florença. E o balanço já estava aprovado e não contemplava espetáculos musicais.

Não importa, faremos de qualquer forma, me diz Martinho. Lá foi ele para Florença, trabalhou meio em segredo por uns 20 dias: fiquei preocupado. Certo dia me comunica que achou um ótimo local para o concerto. Levei um susto. Era uma igreja da época do renascimento, linda por fora. Mas o interior estava em reformas, totalmente tomado por andaimes até o teto. Um desastre

Chegaram os dias do convênio, na segunda semana de fevereiro de 1989. Foi um êxito, faltava o grande final, o concerto musical. Na porta da igreja, concentrava-se um público consistente. Quando se abriram as portas, uma surpresa. Personagens vestidos com sacos rústicos, usados na reforma do templo, espalhavam-se pelos andaimes, tambores soavam nos nichos dos altares vazios.

Atores declamavam pequenos trechos do livro As veias abertas da América Latina, com o consentimento de Eduardo Galeano. E se elevaram vozes, que cantavam as clássicas músicas de resistência dos povos nativos.

No final, brotaram lágrimas e aplausos comovidos, que não cessavam. O público florentino não ia embora, todos queriam abraçar o maestro. E eu, extasiado, pude finalmente respirar com alívio. Uma anotação é necessária, Florença é a urbe de Leonardo da Vinci, Michelangelo Buonarroti e outra centena de gênios, o que faz que seus habitantes sejam sempre muito exigentes, em qualquer tipo de manifestação artística.

Estava nascendo na Itália o Coro Martin Luther King, irmão gêmeo do existente em São Paulo, e também o Coro 1492 para, com música, apoiar a lutas dos povos latino-americanos, o Coro Canto Sospeso, nome que se referia a uma obra de Luigi Nono, que tratava das cartas dos condenados à morte durante o nazi-fascismo, e tantos mais.

A cidade de Milão conserva com carinho a memória de Martinho Lutero, que detém a maior medalha da prefeitura, o Ambrogino d´Oro, realizando concertos em sua homenagem. E os coros por ele criados continuam a funcionar, criando belezas para as novas gerações.

 

José Luiz Del Roio é ex-senador da Itália, ex-membro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, em Estrasburgo,  ex-membro da União Europeia Ocidental, em Paris e coordenador do Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça de São Paulo.


Comentários

Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!

Deixe seu comentário

Outras matérias