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ENTREGUISMO

Bolsonaro quer privatizar única empresa brasileira de semicondutores

Detalhe da fachada da Ceitec, instalada em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Foto: Diorney Salgueiro

07 de março de 2022 - 01h21

A silenciosa renúncia ao futuro

 

Por Marcos Kordyas Dossa

Entre tantos exemplos de ações de desmonte da estrutura do Estado brasileiro que temos testemunhado nos últimos anos, uma está se desenrolando praticamente despercebida: a liquidação da Ceitec, o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada. Uma liquidação tão silenciosa quanto prejudicial às nossas aspirações de termos uma nação razoavelmente desenvolvida.

Localizada em Porto Alegre, a Ceitec é uma empresa federal subordinada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação dedicada ao projeto de circuitos integrados e aos processos de fabricação de dispositivos nanométricos.

Sua estrutura fabril conta com um prédio especialmente construído para evitar vibrações, um complexo sistema de circulação de líquidos e gases especiais, equipamentos de litografia de altíssima precisão, máquinas para teste e encapsulamento de microcircuitos e um sistema de ultrafiltragem de ar para suportar as salas limpas, onde são processadas as lâminas de silício contendo esses microcircuitos.

A criação da Ceitec, em 2008, foi uma resposta à histórica situação desconfortável do Brasil em relação à tecnologia de semicondutores.

Em um mundo onde os chips são onipresentes e se inserem em todas as atividades econômicas e sociais, é impensável que um país do tamanho do Brasil não tenha o domínio completo dessa tecnologia.

Além da importância em termos de independência tecnológica, os semicondutores são um mercado de quase meio trilhão de dólares ao ano, e do qual o país participa apenas marginalmente, com escritórios de projeto e algumas empresas de beneficiamento de lâminas de chips importadas.

A Ceitec é uma empresa única no Brasil. Nenhuma outra tem estrutura de fabricação semelhante, tampouco uma combinação de capacidades de projeto e de processos industriais na mesma instituição.

Um aspecto menos evidente, mas que é fundamental para o objetivo de sua criação, é que a Ceitec conseguiu fazer a tão sonhada ponte entre o mundo acadêmico e o mercado: com uma equipe de projetistas recém-saídos das universidades, a empresa concebeu e concretizou produtos de nível internacional, como o chip de identificação logística e o chip de pedágio eletrônico, que chegou a conquistar quase 50% do mercado brasileiro.

A Ceitec é uma das oito empresas no mundo a ter criado um chip de passaporte eletrônico com certificação internacional de segurança da informação.

Com institutos de pesquisa em saúde, a empresa patenteou dispositivos microssensores biológicos, com aplicação em detecção de doenças de forma rápida e barata, incluindo diabetes, câncer e Covid-19.

Apesar dos evidentes sucessos técnicos da Ceitec, o governo federal incluiu a empresa no Programa Nacional de Desestatização e decidiu, em 2020, pela sua liquidação.

A justificativa do Ministério da Economia é que a Ceitec não atingiu a autossuficiência financeira. Essa justificativa é apenas um pretexto falacioso e não resiste a uma análise minimamente informada.

Primeiro, a autossuficiência financeira nunca foi premissa do projeto Ceitec: a empresa é um investimento público para induzir o desenvolvimento do setor de semicondutores e não pode ser avaliada por critérios meramente financeiros.

Segundo, assistimos a uma corrida mundial pelo domínio da tecnologia dos chips. Centenas de bilhões de dólares estão sendo investidos na área pelas grandes economias. Na contramão do mundo, o Brasil decidiu liquidar o pouco que conquistou.

Terceiro, a indústria de semicondutores, historicamente, só consegue se implantar com apoio do setor público, pois os investimentos iniciais são altos e o retorno do investimento é de longo prazo, acima de 10 anos.

E, por último, a Ceitec custa pouco: ela recebe do Tesouro, em um ano, o equivalente a uma hora e meia de juros da dívida pública federal!

A decisão de liquidação da Ceitec salta aos olhos como retrógrada, inoportuna e irrelevante para as finanças federais.

Então, porque o processo de extinção da empresa continua em curso, praticamente sem suscitar polêmica?

A resposta está no profundo desconhecimento sobre a empresa, sua estrutura, suas capacidades e seu papel institucional. Não estamos nos referindo ao grande público, mas àqueles que deveriam reconhecer na Ceitec um projeto estratégico de Estado.

Chama a atenção que no Congresso Nacional haja poucos parlamentares cientes da situação da Ceitec e muito poucos os que se manifestam, alertando sobre o enorme retrocesso que seria a extinção da empresa.

Muito mais inacreditável é o silêncio da maior parte da comunidade acadêmica brasileira frente ao desmonte da Ceitec, incluídos aí os engenheiros e cientistas da própria área da microeletrônica, e que se deve certamente à desinformação a respeito da empresa.

A Acceitec, a associação dos funcionários, tem buscado informar sobre o erro histórico que seria a liquidação da Ceitec, através de espaços como este, das redes sociais e do site www.acceitec.net.br.

Acreditamos que a Ceitec pode e deve ser mantida e reestruturada, pois continua relevante como nunca para termos um Brasil desenvolvido e soberano.

 

Marcos Kordyas Dossa é engenheiro eletrônico, mestre em Ciência da Computação, conselheiro da Acceitec (Associação dos Colaboradores da Ceitec) e ex-funcionário da Ceitec


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