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ULTRAJE

Mais de 30 milhões de brasileiros passam fome, mas agronegócio produz para exportação

10 de junho de 2022 - 17h09

E a sua fome? É de quê? Notas sobre a indiferença

 

Por Luciléia Colombo

Antes de escrever estas linhas, procurei por um instante me desapegar do sentimento de impotência diante das notícias veiculadas sobre o tema da fome no Brasil. E, paralelamente ao refletir sobre a abordagem do tema por vias mais técnicas e racionais, abro um parêntesis para uma obra que me marcou profundamente quando o assunto é a desigualdade, Les yeux des pauvres (Os olhos dos pobres), de Charles Baudelaire, escrito entre 1855 e 1864.

Uma das frases que merecem destaque na obra, é: “Celui-là seul est digne de la liberté, qui sait la conquérir” (Só é digno de liberdade quem sabe conquista-la) ou seja, Charles Baudelaire escreveu Les yeux des pauvres, pensando a questão da desigualdade social a partir de um referencial que afasta os indivíduos vulneráveis das decisões que os atinge diretamente; para contornar este distanciamento, Baudelaire propõe que os pobres tenham plena consciência de sua situação e sejam capazes de pensar a sua condição, para que, indignados, tenham uma reação e atinjam a liberdade.

Na situação destacada, a desigualdade e a miséria trazem outros fatores patológicos para o mal-estar social: a indiferença, o preconceito, a insignificância do ser humano pelos seus pares.

E tais adjetivos parecem permear a situação brasileira atual quando pensamos na fome de 33,1 milhões de brasileiros atualmente, número divulgado no II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), em 2022.

A trajetória do combate à fome no Brasil exigiu um olhar atento dos governantes sobre o assunto e, a despeito da linha tênue que separa segurança e insegurança alimentar, ações políticas devem ser constantes nessa área.

Um dos programas com mais visibilidade nacional e internacional sobre o combate à fome foi idealizado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em 1993, chamado de Fome Zero.

Naquele contexto, Betinho foi capaz de mobilizar a sociedade brasileira para o problema da fome e da miséria e as suas ações foram diretrizes importantes para programas mais atuais, como o próprio Bolsa Família. Fato é que com a apresentação do supracitado documento sobre os dados recentes da fome no Brasil, nossa situação nunca esteve tão dramática:

“Em 29 anos de luta contra a fome, a Ação da Cidadania se vê diante de um dos piores momentos dos números da fome desde sua fundação. Não podemos mais tolerar que 33 milhões de pessoas não tenham o que comer em um país com tanta diversidade como o Brasil. É um retrocesso total. Nossa instituição nasceu com a comoção de Betinho ao se deparar com esse mesmo número de brasileiros em Insegurança Alimentar grave. Hoje, estamos aqui revivendo a mesma tragédia” (II VIGISAN, 2022, p. 7).

Interessante observar que pelos dados apresentados no documento, a insegurança alimentar é mais presente no campo do que nas cidades, o que revela, entre outros fatores, uma incapacidade ou a inexistência de geração de políticas públicas onde elas deveriam ser abundantes, ou seja, no meio rural:

 

Fonte: retirado do II VIGISAN, 2022.

O relatório também identifica um processo de localização generalizada da insegurança alimentar, em todas as regiões brasileiras, com concentração maior nas regiões Norte e Nordeste, conforme aponta a tabela abaixo:

Fonte: retirado do II VIGISAN, 2022.

Importante pontuar que, na ausência de políticas públicas consistentes, estes números tendem a crescer exponencialmente, levando o Brasil a uma imagem internacional que o desfavorece.

Por outro lado, quando observamos o crescimento da produção de alimentos no Brasil, vemos um aumento bem significativo nos números, pois segundo a estimativa do Valor Bruto da Produção Agropecuária (VBP) de 2022, houve um aumento de 4,3% na produção. Tal aumento foi impulsionado pela expansão do agronegócio no país, almejando, sobretudo, as exportações.

Esta dualidade entre o aumento da fome no país em paralelo ao crescimento da produção de alimentos, nos coloca em uma situação limítrofe sobre as decisões implícitas no processo das agendas de políticas públicas no Brasil.

No mais, o questionamento também se refere à passividade observada na sociedade brasileira diante da dramaticidade do aumento da insegurança alimentar e da condição de vulnerabilidade social. Afinal, temos fome de quê? A justiça social poderia entrar no cardápio de nossas predileções.

 

Luciléia Colombo é professora adjunta de Ciência Política da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) e líder do grupo de pesquisa Federalismo, Políticas Públicas e Desenvolvimento.

 


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