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Protagonismo do Judiciário em questões políticas é demanda da sociedade, afirma juiz

07 de março de 2022 - 04h08

Nem a omissão, nem o heroísmo: o devido processo legal como parâmetro ético do Judiciário

 

Por André Augusto Salvador Bezerra 

Não é novidade que o Judiciário tem ocupado uma posição protagonista nas relações políticas do Brasil. Este fato ainda gera certo estranhamento de muitas pessoas que enxergam juízes(as) como burocratas politicamente neutros, os quais, em tal condição, deveriam limitar-se a apreciar questões técnicas, omitindo-se politicamente.

O problema desse raciocínio é desconsiderar que o ingresso do Judiciário em questões políticas não se dá por iniciativa exclusiva da magistratura. Juízes(as) não instauram processos.

Na verdade, são chamados pelas partes que propõem ações judiciais, dentre as quais cidadãos, entes do próprio Sistema de Justiça (Ministério Público e Defensoria Pública), organizações da sociedade civil e, até mesmo, lideranças políticas e partidárias dos poderes Executivo e Legislativo. Há um verdadeiro chamado social para que juízes(as) ingressem em temas politicamente sensíveis.

Tal chamado, por seu turno, encontra legitimidade constitucional. Ao definir a construção de uma sociedade livre, justa e solidária como objetivo do Estado brasileiro (art. 3º, I), a Constituição determinou, a todas as instituições estatais, o dever de atuar para alcançar esses fins. Inclui-se, aí, o Judiciário enquanto poder de Estado, devendo, portanto, solucionar os processos que nele tramitam de modo a alcançar, exatamente, a liberdade, a justiça e a solidariedade.  

A situação descrita tem levado outro grupo de pessoas a defender a tomada de caminho inverso ao da omissão: o caminho de intensa atuação política. Mencionada defesa encontra sua base de argumentação em um sentimento difuso de descrença sobre a classe política, atribuindo-se a ela uma incapacidade de efetivar os direitos estampados na Constituição.

A política é, assim, equivocadamente vista como um fenômeno inerentemente contaminado por acordos espúrios, conflitos infantilizados e atos de corrupção. Daí a atribuição, a juízes(as), do papel de salvação da Constituição e da própria sociedade, como heróis ou heroínas.

Há, nesse pensamento, um problema grave, entre outros passíveis de destaque. Juiz(a) julga. Aprecia conflitos.  Se algum membro da classe política é acusado de corrupção em um determinado processo, não cabe a membro da magistratura colocar-se na posição de combatente. Cabe-lhe apreciar, imparcialmente, os fatos, reconhecendo ou não reconhecendo a procedência da acusação. Sem apreciações morais aptas a servirem de instrumento de promoção pessoal do(a) julgador(a).

Com a menção à imparcialidade, chega-se ao devido processo legal, o núcleo desta análise.

A compreensão desse princípio tem de ser buscada a partir do artigo 5º da Constituição: “ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Não se trata de mandamento apenas jurídico. O dispositivo constitucional mencionado é também um parâmetro ético profissional. Configura a diretriz mínima a ser seguida por cada membro da carreira da magistratura quando do julgamento de conflitos.

Isso significa considerar igualmente as partes do processo, sem discriminar ou privilegiar qualquer delas, levando em conta os argumentos de ambas e mantendo-se equidistante dos litígios que aprecia.  Enfim, promover um julgamento justo.

O parâmetro do devido processo legal é suficiente para excluir a omissão judicial, que muitos defendem para a magistratura, a pretexto da imparcialidade desta. A escuta igualitária envolve uma atuação ativa. Ouvir e considerar igualitariamente não é pouco em um dos países mais desiguais do mundo, como o Brasil.

Por outro lado, assim deve ser feito sem que o(a) juiz(a) se coloque como um combatente movido por sentimentos heróicos, de forma a se confundir com as pessoas envolvidas no litígio, com suas paixões e vieses. Se o(a) juiz(a) entra no ringue para atingir um dos boxeadores, quem é que vai mediar o conflito? Quem vai se colocar de modo equidistante entre os lutadores?

Eis um tema que não se encerra aqui. Nos próximos textos a serem escritos para o Holofote, a observância do devido processo legal será a base do que se sustentará em termos de Judiciário ou, de modo mais amplo, o Sistema de Justiça. A luta pelo direito, no Brasil, é a luta contra as desigualdades. Mas sem personalismos oportunistas.

 

André Augusto Salvador Bezerra é juiz de direito, professor, doutor e pesquisador em estágio pós-doutoral na USP (Universidade de São Paulo)


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