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EVASÃO ESCOLAR

USP: aproximadamente 15 mil estudantes de graduação não se matricularam durante pandemia

Vista aérea do Crusp, Conjunto Residencial da USP, na Cidade Universitária, no Butantã

20 de abril de 2022 - 00h01

Retorno às aulas presenciais nas universidades públicas: alguns pontos para reflexão

 

Por Michele Schultz

Aos poucos as universidades públicas retomam suas atividades presenciais. Os calendários estão descompassados, uma vez que as administrações, com ou sem participação dos corpos funcional, discente e docente,  adotaram diferentes medidas para o enfrentamento da crise sanitária.

Enquanto algumas universidades iniciaram de pronto o uso de estratégias remotas de ensino, outras optaram por tentar preparar melhor a transição do presencial para a virtualidade das telas.

As gestões universitárias proveram escassos recursos para que conduzíssemos as atividades por meio remoto. Jogaram nos nossos colos plataformas geridas por grandes empresas, as chamadas Big Techs, cujos objetivos são essencialmente os lucros, seja pela contratação direta, seja pelo domínio de dados e conteúdos que ainda não sabemos de que forma serão tratados.

Mesmo contratados, os recursos oferecidos eram débeis e nós sabíamos muito pouco ou quase nada sobre como usar tais ferramentas, especialmente como estratégias didáticas.

Para grande parte do corpo docente, foi um salve-se quem puder! Algumas pessoas não aderiram de pronto ao uso das plataformas remotas, mas na medida que se percebeu que a pandemia avançaria, avaliou-se que o melhor seria usar o ensino remoto emergencial (que é diferente de EAD, a Educação a Distância, ou das chamadas modalidades mediadas por tecnologia) como uma forma de reduzir danos de diferentes ordens, dadas as extremas condições que nos foram impostas pela pandemia.

No entanto, mesmo as universidades ou colegas que suspenderam as atividades por um período para melhor planejar a transição do presencial para o remoto, viram-se diante de muitos desafios, destacadamente, as muitas horas em frente as telas. Outro aspecto que nos parece digno de nota foi a perda de estudantes durante a pandemia.

Dados do anuário estatístico da USP (Universidade de São Paulo) referentes ao ano de 2020, por exemplo, mostram aumento de cerca de 26% no número de estudantes da graduação que não se matricularam ou de trancamentos quando comparamos com o mesmo período em 2019.

Isso significa que cerca de 15 mil estudantes deixaram de frequentar as aulas (a USP tem cerca de 60 mil estudantes de graduação). O mesmo ocorreu com a pós-graduação.

Comparando-se dados de 2019 e 2020, houve queda dos mesmos 26% no número de títulos de mestrado e doutorado outorgados.

Na prática, o que podem significar tais dados?

Primeiramente, revela que a estratégia de ensino remoto não garantiu que milhares de estudantes permanecessem matriculada(o)s, cursando disciplinas.

Se pensarmos numa escala nacional, esse número pode atingir dezenas ou centenas de milhares.

Em segundo lugar, revela que a tecnologia per si não foi suficiente para permitir acesso e participação de um importante contingente de pessoas.

E em terceiro e último lugar, aponta-nos para a urgente necessidade de pensarmos estratégias para mitigar os efeitos da pandemia sobre a evasão universitária.

Entusiastas do uso de tecnologias para o ensino propalam que o uso de ferramentas digitais levaria a um processo de democratização.

Estratégias à distância ou híbridas ou mediadas por tecnologia permitiriam alcançar pessoas que vivem em lugares longínquos, com maiores dificuldades de acesso ao ensino.

No entanto, a realidade do uso do ensino remoto mostrou que não é bem assim. Sem considerar as condições socioeconômicas e a abissal desigualdade social do Brasil, nenhum recurso, por mais avançado que seja, vai permitir democratização e acesso a ensino de qualidade.

O que parece ter acontecido com o uso abrupto de meios remotos para o ensino foi exatamente o oposto!

Estudantes mais pobres, com menos recursos, não tiveram condições de se manterem matriculada(o)s.

Isso se deu, entre outras razões, porque as universidades, na sua grande maioria, não proveram os recursos necessários para o acompanhamento das atividades remotas.

A falta de acesso a computadores e internet criou uma barreira socialmente estabelecida.

Há ainda de se considerar que os projetos político-pedagógicos dos cursos, que balizam a formação nas diferentes áreas do conhecimento, foram pensados para salas de aula, laboratórios, bibliotecas e tantos outros espaços que garantem a convivência universitária, construída com a presença das pessoas e suas interações.

O período do ensino remoto impediu essa construção e, certamente, temos de considerar os impactos do distanciamento no processo formativo.

Além disso, estudantes pobres tiveram de enfrentar contextos de muito mais dificuldades: desemprego, desassistência e fome, além da própria Covid-19.

Muita(o)s estudantes tornaram-se arrimos de suas famílias porque eram as únicas pessoas que tinham condições de seguir trabalhando exatamente por dominarem o uso do computador. Criou-se, portanto, um paradoxo entre o (sobre)viver e o estudar!

As gestões universitárias ignoraram as situações e contextos sociais de nossa(o)s estudantes e isso pode ter influenciado a permanência destes na universidade.

Não temos acesso ao perfil das e dos estudantes que abandonaram ou interromperam seus cursos, mas a percepção é a de que estudantes com maior vulnerabilidade social e econômica compõem esse grupo.

É urgente que as universidades avaliem os impactos da pandemia sobre o corpo discente, especialmente a(o)s estudantes que ingressaram por cotas sociais e/ou raciais.

Há fragilidades nos sistemas de ingresso por cotas, entre elas o fato das gestões universitárias não avançarem (ou avançarem muito pouco) nas políticas de permanência estudantil.

Para que a universidade pública seja verdadeiramente inclusiva e democrática, é necessário entender as realidades sociais de nossa(o)s estudantes e pensarmos urgentemente estratégias de resgaste daquelas e daqueles que não conseguiram se manter matriculada(o)s e da(o)s que sofreram de forma mais contundente os impactos da pandemia de Covid-19!

 

Michele Schultz Ramos é professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (Universidade de São Paulo), presidenta da Adusp (Associação de Docentes da USP) e primeira secretária da Regional São Paulo do Andes-SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior).


Comentários

Branca

20/04/2022 - 12h33

Excelente! As universidades públicas dão pouca atenção ao fato de que parcelas de seus alunos são pobres e tem dificuldade para comprar computadores e pagar internet. Sei que foi uma medida de emergência, mas é bom prestar atenção e considerar a estas situações.

Silvana Bretas

20/04/2022 - 14h00

Parabéns pelo artigo, Profa Michele! Você teve a coragem de abrir um debate silenciado no interior das universidades! Especialmente, as questões sobre o corpo discente!

Carlos

25/04/2022 - 10h38

Incrível! Texto muito bem estruturado e que evidencia uma questão muito importante a ser discutida: a gestão das universidades, principalmente das universidades públicas, não levam em consideração as vivências particulares do alunos e as diferentes dificuldades que podem vir a serem decisivas na evasão.

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