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DITADURA MILITAR

49 anos após golpe militar que derrubou Allende, extrema direita chilena reivindica Pinochet abertamente

O Palácio de la Moneda, sede do governo, é bombardeado pelos militares golpistas da Força Aérea há 49 anos

11 de setembro de 2022 - 11h33

11 de setembro de 1973: uma ditadura que custa a acabar

 

Por Francisco Prandi

Em 11 de setembro de 1973 um golpe militar encerrou uma das experiências populares e socialistas mais avançadas da América Latina. Durante pouco mais de três horas, Allende e seu pequeno grupo de companheiros resistiram bravamente contra os destacamentos militares golpistas. Mas isso não foi o suficiente para impedir a trágica morte de uma democracia avançada e o nascimento de uma das ditaduras mais cruéis da história da humanidade.

É quase um lugar comum nos textos que rememoram esse episódio dizer que esse golpe marcou para sempre a vida do Chile e de seu povo. Foi aberta uma ferida que nunca cicatrizou, tanto nos chilenos que moram no país quanto naqueles que vivem fora.

Aos assassinatos, às torturas e aos exílios se somaram um perverso laboratório econômico neoliberal que destruiu direitos sociais e trabalhistas, privatizou a educação e a saúde, dentre outras medidas anti-povo e anti-nação, que cobrariam sua conta mais adiante, levando o Chile a crises econômicas e jornadas maciças de mobilização popular. Esse modelo seria sancionado na famigerada Constituição de 1980, submetida a um plebiscito sem registros eleitorais, com censura e repressão às oposições, com grandes irregularidades.

A transição para a democracia, em 1990, foi um grande “na medida do possível”. Retorna-se à democracia, mas com um cargo, a princípio, vitalício no Senado para o ex-ditador Pinochet. Retorna-se à democracia, mas com a manutenção do modelo econômico e da Constituição do ditador. Vinte anos de governos autodenominados como centro-esquerda (1990-2010) não foram suficientes para avançar muito. Onde mais se tentou avançar foi no segundo mandato de Michelle Bachelet (2014-2018), esbarrando sempre na “inconstitucionalidade” de uma ditadura que às vezes parece nunca chegar a seu fim.

Pinochet, mais do que todos os outros assassinos do nosso continente, foi aquele que mais se empenhou em formar bases civis de sustentação a seu regime, talvez por isso seja tão admirado por Bolsonaro. Ele se empenhou fortemente em ganhar o apoio não só de latifundiários ou pequenos proprietários temerosos do comunismo, mas também de setores urbanos, inclusive nas favelas.

Não é por acaso que grande parte das figuras que compuseram seu governo tenham continuado suas vidas políticas depois ocupando cargos nos governos de Sebastián Piñera (2010-2014, 2018-2022). Os principais partidos de direita Unión Demócrata Independiente e Renovación Nacional, por exemplo, foram favoráveis à manutenção de Pinochet no poder em 1988.

No entanto, até muito recentemente, mais precisamente até as eleições de 2017, tais figuras sempre exaltavam os logros econômicos da ditadura e, mesmo retoricamente, condenavam “excessos”, “erros” que “teriam” havido em matéria de Direitos Humanos – como se para cada medida neoliberal não tivesse sido necessário o suplício de milhares e milhares de chilenos para que a ditadura pudesse capitalizar a previdência ou desmontar o sistema público de ensino.

Nas eleições de 2017, surge uma figura de extrema-direita, José Antonio Kast. Filho de pai nazista – conforme demonstram documentos alemães – Kast teve sua primeira experiência política no movimento estudantil “Gremial” no Chile, de corte fascista. Após alguns anos como deputado pouco expressivo, candidatou-se à Presidência, em 2017, chegando a 7% dos votos, dando declarações que há até pouco tempo teriam sido consideradas inaceitáveis, como a de que se Pinochet estivesse vivo teria votado nele.

Em um contexto continental e mundial marcado pelo ascenso de forças neofascistas, sua segunda candidatura, nas eleições do ano passado, teve muito mais êxito e chegou ao segundo turno bastante disputado com o atual presidente Gabriel Boric. Foi a primeira vez, desde as primeiras eleições 1990, que um candidato abertamente saudosista da ditadura chegou a essa posição.

Soma-se a isso um enorme aumento do racismo e da xenofobia. Em setembro do ano passado, na cidade de Iquique, cinco mil pessoas realizaram uma marcha contra os imigrantes. Ao final, foram a uma praça onde havia alguns venezuelanos sem teto e queimaram suas barracas, seus poucos pertences e até brinquedos das crianças.

Isso foi feito antecipando-se a uma decisão de despejo, realizada pela prefeitura. Eventos desse tipo se repetiriam em 2022. No sul do País, o aumento das tensões entre proprietários de terras e indígenas mapuches, historicamente despojados e reprimidos, também levaram a episódios dessa natureza.

Em 2020, quando alguns mapuches ocuparam prédios públicos em solidariedade a presos políticos, grupos de encapuzados percorriam as ruas com gritos racistas, como “fora índios” e “quem não pula é mapuche”.

Chegaram até a cercar alguns desses prédios com o intuito de pressionar pela expulsão dos manifestantes, isso tudo um dia após um senador, ex-ministro pinochetista, defender a expulsão dos indígenas desses prédios.

Também em 2020 foi profanado o túmulo de Víctor Jara, artista símbolo do período Allende.

Pixação da extrema direita no túmulo de Victor Jara faz referência ao fato dos militares terem esmagado as mãos dele

Essa reação ocorreu principalmente após a irrupção das grandes manifestações de outubro de 2019, que puseram em xeque o modelo econômico e político do país, com forte protagonismo dos movimentos sociais. Também não era por acaso que esse outro polo político recorria a canções como “El derecho de vivir en paz”, de Víctor Jara, e “El baile de los que sobran”, de Los Prisioneros – música que denunciava a exclusão propiciada pelo modelo da ditadura nos anos 1980.

Tratava-se de um grito contido que havia sido abafado em 11 de setembro de 1973, se bem que nunca havia deixado a cena completamente, nunca tinha emergido com tanta força como agora; era um grito de gerações e gerações. Isso ocorreu com forte protagonismo de uma geração que nasceu após essa transição de uma ditadura que nunca parece acabar por completo e que não se furtou a criar seus próprios símbolos sem desprezar os antigos.

Curiosamente, há poucos dias atrás, após a derrota no plebiscito sobre a nova constituição, o governo Boric realizou uma reforma ministerial, nomeando como sua ministra do Interior, Carolina Tohá, filha de José Tohá, ministro da Defesa e do Interior do governo Allende. Na ocasião, ressaltou sua emoção ao chegar no mesmo posto que seu pai, torturado e morto pela ditadura. Além disso, não foi por acaso a nomeação da neta de Allende (Mayra Alejandra Fernández de Allende) como ministra da Defesa.

Embora muito mais moderado e sem qualquer pretensão de ruptura, Boric fez diversas menções ao “compañero presidente” entre seu discurso de vitória eleitoral e sua posse como presidente. Mais do que o suficiente para atiçar os ânimos de uma direita que acusa-o incessantemente de querer reeditar o “comunismo de Allende que levou o país ao caos”.

Talvez a marca mais triste deste 11 de setembro é o de ocorrer após uma grande derrota para o movimento democrático e popular que foi a derrota da chancela à nova Constituição, no plebiscito de 4 de setembro. Também é o primeiro que contará com uma oposição abertamente pinochetista relevante na cena política nacional e que ousa celebrar o golpe.

No entanto, não se deve perder de vista que, paradoxalmente, também é o primeiro em que o Chile estará mais próximo do que nunca de botar fim a um grande legado autoritário, que é a Constituição já política e socialmente morta. Se muito falta para a conquista do tão sonhado e cantado “derecho de vivir en paz”, não se deve nunca esquecer de outra frase de Víctor Jara, escrita pouco antes desse triste e longo dia que foi o 11 de setembro de 1973: “La estrella de la esperanza continuará siendo nuestra”.

 

Francisco Prandi é sociólogo formado pela USP (Universidade de São Paulo) e doutorando em Sociologia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).


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