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GEOPOLÍTICA

Após ataque à ponte, Zelensky se enfraquece entre aliados e disputa por Kherson torna-se decisiva

Os presidentes da Ucrânia,Volodymyr Zelensky, e da Rússia, Vladimir Putin

10 de novembro de 2022 - 16h37

Depois do ataque  à Ponte de Kerch, vem o tudo ou nada em Kherson

Por James Onnig

Mapa da região em disputa por russos e ucranianos

Nos próximos dias, a batalha de Kherson pode ser derradeira. As forças ucranianas vão tentar estabelecer uma “cabeça de ponte” na margem oriental do Rio Dnipro e fustigar as áreas anexadas pela Rússia.

Estrategistas avaliam que essa tentativa de ofensiva só está sendo possível porque a Ponte de Kerch sofreu avarias no ataque de outubro último. Localizada a cerca de 350 quilômetros de Kherson, a ponte era responsável pelo abastecimento maciço da Criméia e de suas cercanias por rodovias e ferrovias tomadas pela Rússia a partir de 2014.

Lembro do geógrafo franco-marroquino Yves Lacoste e de seu livro “A geografia, isso serve, em primeiro lugar, para se fazer a guerra”, de 1976. A obra nasceu de um artigo escrito por Lacoste em 1972 para o Le Monde denunciando a estratégia dos Estados Unidos de bombardear diques do Rio Vermelho, no Vietnã, para provocar inundações e escassez de alimentos entre a população que apoiava a luta dos Vietcongs (nome popular do movimento político Frente Nacional de Libertação do Vietnã).

Para entender a importância da Ponte do Estreito de Kerch e da disputa por Kherson, vamos reconstruir um pouco a geopolítica russa.

No começo do século 18 a Rússia não tinha força naval ou frota comercial relevante. O Báltico era dominado pela marinha sueca que através de possessões impedia a Rússia de dominar aquela costa. Depois de uma campanha militar vitoriosa, fundou-se São Petersburgo e o país passou a ter os primeiros estaleiros. Por volta de 1880 a Marinha Russa na região já era respeitada pelos adversários e foi dessa indústria naval que saiu o primeiro navio quebra-gelo a propulsão nuclear, o Lênin, em 1960, fundamental para a navegabilidade desse “grande norte”.

Na região do Mar Negro foram séculos de domínio do Império Otomano acompanhando de forte influência do Império Austro-húngaro nas suas margens. A Rússia almejava ter pontos avançados naquelas águas e lutava para emancipar as populações russas que lá residiam.

É de lá que podemos identificar uma outra frente geopolítica russa: a sua parte mais ocidental. Em antigas abordagens geoestratégicas, sabia-se que desde sua longa história de ocupação, as gigantescas planícies ocidentais da Rússia eram um ponto de vulnerabilidade. A falta de grandes montanhas, rios de dimensões amazônicas ou densas florestas explicava naqueles tempos os sucessivos conflitos contra poloneses, suecos, franceses e alemães ao longo de mais de quatrocentos anos.

Por isso a Ucrânia, também localizada na vasta planície, sempre foi estratégica para as lideranças russas ao longo da história. Ela é vista no corolário geopolítico russo, por décadas e mais décadas, como a possível porta de entrada de uma invasão estrangeira.

Foi nesse contexto que Catarina II priorizou a conquista da Crimeia e a criação de Sebastopol. Estrategicamente no litoral de águas calmas e profundas, a cidade abrigaria a Frota Naval do Mar Negro que seria, uma força de defesa fundamental para também guardar a entrada sudoeste das gigantescas planícies a partir de 1770-1780.

Para se ter uma ideia do que representa esse conjunto espacial e geoestratégico voltemos à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), à Grande Guerra Patriótica da União Soviética (1941-1945).

A região era tão importante que Albert Speer, arquiteto diretamente ligado a Hitler, estava envolvido na construção de uma ponte muito similar a atual. Unidades da elite da engenharia alemã foram convocadas para que a construção superasse problemas de instabilidade geológica do fundo do mar. A brava resistência soviética dissuadiu os invasores nazistas que destruíram o que haviam construído durante a fuga entre o fim de 1943 e o começo de 1944.

Mas não é somente uma das regiões de entrada das grandes planícies ou um ponto avançado de navegabilidade e defesa do conjunto Mar de Azov-Mar Negro-Mediterrâneo. A ideia da ponte de Kerch foi sim uma possibilidade de aproximação entre Rússia e Ucrânia já que o projeto teve um comitê executivo constituído em 2010 pelos então presidentes Dimitri Medvedev, da Rússia, e Viktor Yanukovych, da Ucrânia.

Com a queda de Yanukovych, em fevereiro de 2014, nos chamados protestos Euromaidan dos ultranacionalistas ucranianos, a Rússia colocou em ação o plano de contingência de retomar a Crimeia. Lembremos que a Península da Crimeia foi cedida pela República Socialista Soviética da Rússia para a administração da República Socialista Soviética da Ucrânia em 1954.

Imediatamente após a retomada da Crimeia, a Rússia iniciou as obras da atual ponte. Alguns aspectos dessa obra precisam ser ressaltados. Uma infraestrutura operante fortalece as redes e fluxos de pessoas e mercadorias. Essa ponte é o elo estrutural de uma Crimeia cada vez mais russa. Além disso, todos os fixos condutores (avenidas, viadutos, pontes etc.), usando aqui os conceitos do professor Milton Santos (1926-2001), são hoje fundamentais para um mundo onde os fluxos são cada vez mais intensos entre os lugares. A ponte de Kerch é via para integração ainda maior até mesmo como um elemento constitutivo do projeto da Nova Rota da Seda lançado pela China, parceira da Rússia, em 2013.

Quem controla a Ponte de Kerch garante o controle e consequentemente a navegabilidade pelo Mar de Azov. Nas suas margens está Rostov, uma cidade que vem experimentando enorme crescimento. Por ela passam os canais fluviais Volga-Don que interligam esse sudoeste russo com a rica e industrializada região de Moscou.

A ponte em si também é uma ligação com a região de Krasnodar e o Porto de Taman, ainda em obras. O governo russo ambiciona transformar todo esse vasto espaço geográfico em uma espécie de Zona Econômica Especial cada vez mais dinâmica, um centro do corredor norte-sul da Rússia ocidental.

Zelensky não está satisfeito com a ajuda recebida até agora vinda dos Estados Unidos e da Europa e por isso vai despejar tudo em Kherson, para mostrar força e ganhar mais crédito. Já se fala abertamente que esse apoio ao governo ucraniano está custando muito caro e sem os resultados que a Otan ambicionava.

Poucas horas atrás o vice-governador de Kherson morreu em um acidente automobilístico suspeito. Sua postura integralmente pró-Rússia incomodava muito os ucranianos. Vingança ou tentativa de retaliação?

Quem tentou derrubar a ponte sabia bem tudo isso, mas o que está ruindo é o apoio a Zelensky. Mesmo com essa ofensiva ucraniana em Kherson a influência russa está se impondo. Podemos esperar certamente uma nova patada do urso.

 

James Onnig é professor de Geopolítica da Facamp (Faculdades de Campinas)


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