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DIREITOS

Desigualdade social pode ser combatida com participação popular nas decisões de governo

16 de março de 2022 - 10h19

A participação como princípio programático: avaliar para avançar 

 

Por Carla Almeida

A ascensão das forças conservadoras de extrema direita ao poder, e seu avanço no último período pela sociedade, torna esse ano de eleições bastante desafiador para as esquerdas no Brasil.

Por isso, a construção de programas de governo a serem apresentados à sociedade exige atenção ao legado deixado pela forma como se concretizaram nas últimas décadas algumas das bandeiras que são marcas das plataformas dos movimentos sociais progressistas e de governos de esquerda no Brasil.

Desejando oferecer uma contribuição nessa direção, meu foco aqui é a “bandeira da participação”. 

A palavra participação é polissêmica e o ideário participativo tem uma longa história no campo das esquerdas, remontando às diversas experiências de conselhos populares autônomos. Certamente, essa história pode ser mobilizada para ajudar a construir horizontes para os caminhos seguintes.

Mas, aqui, eu me detenho a avaliar a maneira como a demanda por participação, empunhada por movimentos sociais progressistas e por partidos de esquerda desde a Constituinte, institucionalizou-se e passou a marcar a trajetória de um conjunto variado de políticas públicas nas últimas décadas.

Meu argumento é que a avaliação dos ganhos, dos custos e dos limites que resultaram desse processo de institucionalização da participação pode, também, nos ajudar a calibrar expectativas para a formulação de programas futuros. 

A demanda por participação ganhou um espaço significativo na agenda de vários movimentos sociais e partidos de esquerda nos seus esforços de incidirem nas disputas políticas transcorridas na década de 1980, no processo de democratização.

De forma geral, a expectativa era a de que a inclusão de novos atores nos processos decisórios de políticas públicas, oriundos dos grupos subrepresentados nas instituições tradicionais (como as classes populares, as mulheres, a população negra etc.), inverteria prioridades e alteraria o quadro das imensas desigualdades sociais que marcam o país.

A associação entre participação e políticas públicas transformou-se numa ideia-força que traduzia o desejo de construir uma democracia substantiva, que fosse além do que é capaz de produzir a democracia liberal representativa.

A expectativa era, portanto, a de que a democratização do poder, com a promoção da “voz política” de grupos até então subalternizados produzisse justiça e mudanças sociais. Evidentemente, o escopo e o conteúdo das mudanças sociais propriamente desejadas variavam conforme a própria pluralidade das forças que compõem o campo das esquerdas.

Além disso, é preciso reconhecer que nesse campo há forças que sempre nutriram fortes críticas a esse investimento de energias na institucionalização de demandas em políticas públicas. Feito esse registro, o foco aqui, de todo o modo, é avaliar o legado do que foi implementado. 

Como resultado das demandas então presentes, o ideário participativo marcou de maneira importante as propostas reformadoras de políticas públicas apresentadas naquele contexto. Conselhos Gestores e Conferências Públicas constituíram-se nas cristalizações mais características da institucionalização daquelas demandas por participação.

O SUS (Sistema Único de Saúde) é o exemplo mais evidente e forte do resultado da associação entre participação e políticas públicas, mas também são seus resultados o Suas (Sistema Único de Assistência Social), o Estatuto da Cidade, o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), entre outros.

O ideário participativo também inspirou e esteve presente nas propostas apresentadas desde então para políticas públicas nascentes, como políticas públicas para mulheres, idosos, igualdade racial, juventude, políticas para a comunidade LGBTQIA+, entre outras.

Todas essas políticas passaram a prever a criação e expansão de Conselhos Gestores e Conferências Públicas. Assim, conselhos gestores e conferências tiveram papéis centrais na implementação efetiva das propostas reformadoras de políticas ou na criação de novas áreas de políticas públicas.

Vale destacar que várias das propostas que resultaram nessas políticas foram, elas próprias, gestadas em instâncias participativas, a exemplo do SUS, cujo início de institucionalização ocorreu na 8ª. Conferência Nacional da Saúde, em meados da década de 1980. 

Não à toa, as instâncias participativas foram os alvos de primeira hora do governo Bolsonaro. Com a Medida Provisória 870, já em janeiro de 2019, ele revogou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e com o Decreto 9.759, de abril de 2019, extinguiu ou impôs restrições a várias instâncias participativas.

Considero que esses atos que pretendem excluir e/ou restringir o papel das instâncias participativas devem-se à centralidade adquirida por elas na estruturação do sistema de direito no Brasil desde a Constituição de 1988, como mostram os exemplos anteriormente fornecidos.

Assim, tal como se institucionalizou, a participação está umbilicalmente associada ao que foi construído nas últimas três décadas em termos de garantias sociais e de direitos no país.

Apesar de todos os limites e insuficiências que o sistema de direitos que temos apresenta diante das imensas desigualdades sociais que continuam a marcar a sociedade brasileira, sua construção tem a digital da participação e, por isso, o desmantelamento das instâncias participativas é estratégico para as forças conservadoras de direita.

Mas, também exatamente por conta daqueles limites e insuficiências, o legado da institucionalização da participação deixou muitas frustrações se levarmos em conta as expectativas de mudanças que inspiraram sua defesa na década de 1980.

Destaquemos alguns dos aprendizados desse legado para compreender os motivos pelos quais vários movimentos sociais, hoje, dirigem críticas às instâncias participativas existentes, como os conselhos. 

Primeiro, a participação institucionalizada precisa de tempo para confrontar relações pré-existentes de poder, acumular força institucional, cristalizar novos padrões de ação política, e, assim, ser capaz de provocar efeitos nas políticas públicas.

Dentre outros motivos, porque os atores da sociedade civil precisam aprender a agir num terreno que lhe é estranho e também inóspito, o terreno conformado pelo Estado. Ou seja,  aprendemos que as instâncias participativas não concretizam no ritmo esperado o ideal que as inspirou de aprofundamento democrático e de ampliação do acesso aos direitos. É preciso uma militância contínua no interior dessas instâncias para que os resultados caminhem na direção desejada. 

Além disso, aprendemos que as diferentes facetas dos processos participativos não interagem de forma harmônica na produção de efeitos. Por exemplo, se a abertura de novas oportunidades de participação foi um ganho para a construção de uma institucionalidade democrática, por outro lado, aprofundaram-se nesse processo as desigualdades entre os “já organizados” e os excluídos da participação.

Os grupos e movimentos mais formalizados, com mais recursos e estrutura respondem prontamente às exigências da participação institucionalizada, enquanto outros, embora possam ser mais “combativos” e com maiores conexões com grupos subrepresentados nas instâncias tradicionais, muitas vezes não conseguem dar conta da sobrecarga imposta pela participação institucional. 

Finalmente, o terceiro elemento que desejo destacar diz respeito às desigualdades estruturais que se espelham no território e que impedem com que inovações nas políticas públicas, como a inclusão da participação nos seus processos decisórios, alcancem resultados razoavelmente uniformes pelo país a fora.

Sabemos que, nos municípios maiores e mais ricos, os conselhos funcionam de forma mais satisfatória. Sabemos também que, nas instâncias nacionais, nas capitais e nos municípios maiores, a presença de atores coletivos identificados e afinados com o perfil de movimentos sociais é mais frequente.

Em contrapartida, na maioria dos municípios, principalmente nos menores, é outro o tipo de ator coletivo com maior presença, por exemplo, nos conselhos gestores. Ou seja, a qualidade do funcionamento das instâncias participativas depende de qual ator a ocupa e também da disponibilidade de recursos que municípios e Estados dispõem para implementar e conduzir mudanças nas políticas públicas.

Adicionalmente, é também preciso considerar que a participação foi muito mais frequente nas políticas sociais e não atingiu da mesma maneira aquelas políticas consideradas mais “duras” e “técnicas”, como a política econômica. 

Entretanto, a despeito dos limites e problemas que a experiência de institucionalização da participação legou no último período, me parece que se mantém viva a ideia de que os governos de esquerda necessitam não apenas fazer  “política para o povo, mas também com o povo” (essa expressão é adaptação de uma frase de Anne Phillips, uma teórica feminista). Então, a manutenção da participação como item programático é incontornável num projeto de esquerda. 

E se é assim, os aprendizados que listei não são motivos para jogar fora a experiência acumulada, até porque ela também trouxe muitos ganhos, como eu procurei ressaltar. Os aprendizados podem nos ajudar a defender de forma mais lúcida o lugar e o papel da participação em projetos que almejem a democratização radical da sociedade e do Estado.

Nessa direção, eles alertam que, se a democratização do poder é central e estratégica num governo de esquerda, a defesa da participação como bandeira não deve ser concebida como uma panaceia para dar conta de todas as tarefas que requer a construção das mudanças que desejamos.

Mostram também que as instâncias participativas são ocupadas por atores coletivos portadores dos mais diversos projetos políticos, do mesmo modo que estão, em alguma medida, condicionadas por relações cristalizadas de poder existentes nas estruturas estatais.

Então, a luta política não acaba com sua criação, mas demanda um investimento contínuo de energia que desafia fortemente os movimentos sociais comprometidos com mudanças. A experiência também mostrou que propostas de participação não podem se restringir a determinados setores de políticas.

As políticas econômicas, por exemplo, precisam ser democratizadas para que seja possível combater as estruturas que amparam as desigualdades sociais. Ou seja, propostas de criação de instâncias participativas precisam compor um arco maior de propostas orientadas para mudanças estruturais.

Por fim, a defesa da participação via instituições não deve negligenciar a importância e o papel que outras formas de participação têm para a promoção de mudanças sociais, como aquelas vistas como mais conflituosas e contestatórias, caracterizadas pela ação direta. 

* As ideias expostas neste artigo resultam de trabalhos desenvolvidos com muitos colegas.

 

Carla Almeida é professora do Departamento de Ciências Sociais e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Participação Política da UEM (Universidade Estadual de Maringá)


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