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CINEMA

Censura político-ideológica ao cinema brasileiro começou há 110 anos em filme sobre João Cândido

Foto. Oda Rodrigues

12 de março de 2022 - 18h29

A censura está na moda

 

Por Oda Rodrigues

A censura voltou a ser debatida nas rodas de cineastas brasileiros, desde o golpe de 2016, quando o governo Temer passou a perseguir a equipe do filme Aquarius (2016), dirigido por Kléber Mendonça Filho.

Sob pautas como “valores morais”, “princípios religiosos” e “neutralidade política”, as artes passaram a ser objeto de atenção de pessoas e grupos até então com pouco ou nenhum conhecimento sobre processos de produção artística.

Em 2018, com o desdobramento do golpe na eleição de Jair Bolsonaro, essa ofensiva censora ganhou o nome de “guerra cultural” acompanhada de diversas ações normativas visando controlar trabalhos e trabalhadores da arte e cultura, incluindo o audiovisual.

Nesse contexto, Vandré Fernandes, diretor de Osvaldão (2014), chamou minha atenção para o livro Roteiro da Intolerância: a censura cinematográfica no Brasil (Senac SP, 1999, 264 páginas), de Inimá Simões, fundamental para conhecer a trajetória de como a censura ao cinema brasileiro se dá quase que simultaneamente à difusão dessa arte no país.

Estruturado em ampla pesquisa documental, a leitura do livro aponta as várias faces da censura brasileira com seu viés político-ideológico já no nascedouro da sétima arte ao proibir a exibição, em 1912, do filme A vida de João Cândido (ou Vida do cabo João Cândido), dirigido por Carlos Lambertine. Esse ato inauguraria o longo caminho até a Doutrina de Segurança Nacional criada nos governos militares

O autor demonstra que a prática da censura cinematográfica não é uma exclusividade brasileira e nem apenas de países onde regimes inequivocadamente autoritários estiveram ou ainda estejam presentes no cotidiano da população.

Porém destaca a criatividade de nossas autoridades ao manter parâmetros vagos sobre os limites de até onde poderiam ir na eliminação de sequências inteiras de imagens, na omissão ou regravação de trilhas sonoras, na reformulação dos créditos ou no banimento, puro e simples de obras nacionais e estrangeiras.

Ainda que a centralidade da obra seja a censura, merecem atenção as consequências econômicas para artistas, exibidores e produtores cinematográficos a cada decisão desta ou daquela autoridade sobre cortes, proibições e classificações de quem poderia ter acesso ao produto fílmico.

Ficam evidentes as dificuldades de compreender a atividade cinematográfica como mercadológica e estratégica com possiblidades do cinema como janela para múltiplos negócios transnacionais e para formação de um público potencialmente consumidor de produtos associados à obra.

As diferentes concepções e modelos de fomento ao cinema nacional também são abordados no texto apoiado por uma documentação interpretada cuidadosamente para compreensão do leitor leigo sem ser, no entanto, tediosa para conhecedores do tema.

O livro discorre sobre bastidores das condições para exibir filmografias estrangeira e nacional de diretores que vão de Eisenstein a Nagsa Oshima, do citado Carlos Lambertine a Carlos Ebert, e os pareceres, portarias, cortes e diferentes agentes públicos, religiosos, associações que interferiram direta e indiretamente no direito do espectador de assistir ou não a uma obra audiovisual (incluindo aqui novelas, filmes experimentais, performances, curtas, documentários etc.).

Depoimentos de cineastas compõem o lado de quem sofria os efeitos de políticas castradoras da liberdade de criação artística, os sucessos e os fracassos em driblar os censores.

O anedotário se faz presente na composição de órgãos censores com religiosos, mulheres moralistas de classe média, artistas frustrados, esposas de militares, psicólogos, oportunistas de todo gênero e até jogadores de futebol.

Nesse quesito, uma das curiosidades mais pitorescas é a origem da música Solange, adaptação de Leoni e Léo Jaime para So Lonely, do músico Sting.

Além dos componentes mais ou menos truculentos, vários pareceres dos censores desvelam uma gama de preconceitos, ignorâncias, perversidades, desapego ao ato da reflexão e o mínimo de bom senso ao redigir opiniões esdrúxulas sobre obras cinematográficas e seus criadores.

As ressalvas que aponto no texto são referentes a algumas percepções políticas do autor sobre a gestão do general Ernesto Geisel que, apesar das contradições com o período mais duro da ditadura, continuou a promover ações de terrorismo estatal, mesmo  que sob o lema “abertura lenta, gradual e segura”.

Isso em nada desvaloriza a obra, ao contrário, reforça a necessidade do exercício de contextualização do registro histórico no qual o livro está inserido.

Por fim, Roteiro da Intolerância traz preciosas lições para um presente onde os mecanismos da censura continuam a cercear a criação artística e dificultando a viabilização econômica da produção cinematográfica.

No debate sobre redemocratização do financiamento público à cinematografia brasileira, ouso dizer, a obra de Inimá Simões tem seu lugar de destaque.

 

Oda Rodrigues é formado em Letras pela USP (Universidade de São Paulo), mestre em Artes pela Unespar (Universidade Estadual do Paraná), pesquisador associado ao LabEducine (Laboratório de Cinema e Educação) da Unespar e documentarista


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