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DITADURA NUNCA MAIS

Ex-preso político recorda cronologia da repressão que jogou país na ditadura militar por mais de duas décadas

02 de abril de 2023 - 10h42

Por Francisco Celso Calmon

Na madrugada de 31 de março para o dia 1º de abril, as tropas do conhecido conspirador, anticomunista ferrenho, general Olímpio Mourão filho, saiu de Juiz de Fora , em Minas Gerais, em marcha para a capital do Rio de Janeiro.

O brigadeiro Moreira Lima pediu autorização ao presidente Jango para dispersar a coluna com alguns tiros de seu avião e sem possiblidade de reação da tropa do Mourão.

Jango negou, como viria a negar a Brizola a resistência a partir do Rio Grande do Sul.

Goulart temia o envolvimento direto dos Estados Unidos e também o derramamento de sangue entre brasileiros.

O Brasil ficou submisso aos Estados Unidos e o derramamento de sangue ocorreu com os assassinatos, torturas, sequestros, estupros, cabeças cortadas, extermínios, incinerações e sumiços de corpos.

Não ouve paridade de armas, que haveria caso Jango optasse pela resistência.

Quase sexagenário, o golpe de 1964 ainda produz efeitos deletérios e nefastos.

O golpe de 1964 pegou-me, quase que literalmente, de calças curtas. Era costume, e às vezes obrigação, o uso de calças curtas até uns 12 anos. Eu tinha 16 anos.

Jango permaneceu em solo pátrio até o dia 2 de abril.

Eu atuava no movimento estudantil desde os 14 anos, e aos 16 era diretor do grêmio do colégio estadual e secretário geral da União dos Estudantes Secundários do Espírito Santo (Ueses). Era o redator-chefe do jornal da entidade, também escrevia em um encarte quinzenal de um dos jornais da cidade e semanalmente falava numa rádio local.

Na véspera do golpe, 31, e no dia, 1°, pessoas foram detidas, inclusive o padre, assistente da Juventude Universitária Católica (JUC), Waldir Ferreira.

O medo tomou conta de diversos colegas que abandonaram a Ueses. Restaram somente o presidente e eu, o que nos levou a organizar um congresso para eleição de uma nova diretoria.

O sucesso dessa empreitada custou o meu fichamento e monitoramento pelos órgãos de repressão da ditadura e a minha posterior ida para o Rio de Janeiro.

Em meados de 1965 fui escolhido para a direção regional da Juventude Estudantil Católica, a JEC, com sede no Rio, para entrar no lugar do Ivo Lesbaupin, que entraria para o seminário dos dominicanos.

No Rio, eu era dirigente regional da JEC e fui eleito vice-presidente da Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (Ames). Assumi a presidência no ano seguinte, 1966, por conta da renúncia do presidente. Ele já havia sido detido cinco vezes, sendo uma delas junto comigo, pelo Dops. Como ele tinha residência conhecida, tornou-se alvo fácil da intimidação dos agentes da ditadura.

A Ames havia sido colocada na ilegalidade. Meu mandato durou um ano. Realizamos um congresso clandestino, em Xerém, subúrbio do Rio, para eleger uma nova diretoria, num sítio, com normas de segurança bem rígidas. O local não vazou e ninguém caiu prisioneiro.

Programamos realizar uma manifestação pública, na Praça do Méier, para apresentar o novo presidente da Ames, Alan Mello, eleito naquele congresso.

Praça cercada de PM e policiais do Dops.

A massa de estudantes secundaristas, já impaciente pela meia hora de atraso do horário divulgado, e nós, a direção, preocupados com a possível carnificina.

Decido começar, subo num muro e dei por iniciada a manifestação.

A praça estava cercada por policiais. Um agente, à paisana, apontou o revólver para mim. Mal consegui pronunciar algumas frases e tive de pular do muro e correr muito. A manifestação prosseguiu, apenas uns quatro ou cinco foram presos.

No dia seguinte, os jornais Última Hora e Tribuna da Imprensa, ao noticiarem o caso, informaram o meu nome por completo.

A minha militância já não era mais só estudantil, havia entrado para a AP, a Ação Popular. Fui contribuir regionalmente na formação e organização de outros segmentos sociais.

À medida que a ditadura foi acabando com a réstia democrática, fui caminhando para a resistência armada.

Liderei uma dissidência na AP. Formamos o NML – Núcleo Marxista Leninista, um agrupamento circunscrito ao Rio de Janeiro e ao Espírito Santo, em 1968.

O NML não tinha a pretensão de ser mais uma organização e sim um núcleo aglutinador de dissidências de outros partidos com o propósito de montar uma grande organização com potencial de derrubar a ditadura.

Como seu dirigente geral, e com esse propósito, passei a dialogar com dissidências de outros partidos no sentido de nos juntarmos ao Comando de Libertação Nacional (Colina) para, em fusão com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), formarmos a VAR-Palmares, em 1969.

Foi o militante do NML, nome de guerra Cesar, dirigente do Gustavo Schiller, base do NML, que me passou a informação do cofre do Ademar de Barros. A tia de Gustavo era a amante do governador de São Paula e na casa de seu irmão estava o cofre.

Enviei a ideia para Juarez de Brito, que foi o comandante do grupo, no qual figuraram também três militantes originários do Núcleo, da ação de expropriação do cofre.

Expropriação exitosa, 2.6 milhões de dólares (corrigido o dólar para o presente e convertido para o real deve se aproximar de R$ 100 milhões), suficientes para uma revolução. Mas em lugar de viabilizá-la, levou a rachas.

Ainda em meados de 1968, consegui estudar até o segundo ano de Direito, quase que clandestinamente, em Vitória, no Espírito Santo, e trabalhar no Rio no Sesi-DN.

No fim de 1968, entretanto, invadiram a casa de minha mãe em Vitória, a minha procura. Também me procuraram na faculdade.

Em janeiro de 1969, chegaram ao meu trabalho, em fevereiro, adentraram a igreja onde se realizava o casamento de minha irmã.

De todas essas tentativas, escapei por pouco e fui para a clandestinidade total. Deixei de estudar por quatro anos.

A entrada na VAR significou a abreviatura de minha militância. Após sucessivas quedas de companheiros, chegou a minha vez.

Sequestrado com mais duas companheiras, em 4 de novembro de 1969, mesmo dia em que assassinaram Marighella em São Paulo.

Fomos levados para o DOI-Codi da Barão de Mesquita, no Rio, e três ou quatro dias após fomos para a Polícia do Exército da Vila Militar.

Fui torturado moral, psicológica e fisicamente.

Fiquei 59 dias em uma cela solitária, de aproximadamente 80 centímetros por um metro e noventa, recebi choques, coronhadas e chutes.

Ser sequestrado com outras companheiras, sendo uma namorada, torna tudo mais complicado e com menos controle. A namorada, que tinha 16 anos e estava ainda em fase de formação, foi a que mais sofreu. Ela foi muito resistente às sevícias.

A tortura que mais senti foi a psicológica, porquanto ameaçavam estuprar a minha namorada na minha frente, colocar minha mãe nua na minha presença… Havia ameaças e insinuações de morte todos os dias.

A tortura moral consistiu em saber, pelos torturadores, o quanto uma companheira havia negociado a sua dignidade em troca do não-sofrimento e de algumas regalias. E a visita de um primo-irmão, tenente do Exército, que em lugar da solidariedade incentivou a tortura com estas palavras: “… Aqui você está conhecido como rebelde. Não quer colaborar, aqui é na porrada mesmo. É a lei do cão…”.

Quando fui libertado condicionalmente, precisei retirar dois dentes e havia uma vértebra quebrada.

A promiscuidade de uma unidade do Exército Brasileiro com o Esquadrão da Morte foi algo que me chocou. Sou testemunha de que tiravam de lá presos comuns para serem executados.

Ficava sabendo quando os recrutas me contavam que havia saído no jornal que “fulano havia virado presunto”, como era noticiado pelos periódicos.

A morte estava sempre rondando. Não havia limites e nem critérios. Quando o companheiro Chael Charles foi assassinado, ouvi seus gritos e urros até o silêncio completo da sua voz.

A tortura viola a alma, o corpo, os direitos humanos, o direito internacional. Nem o Brasil e nenhum país deve sequer tolerar. Entretanto, continua a ocorrer, principalmente nas periferias praticada pelas polícias e milicias.

Fui libertado condicionalmente para tratamento. Estava doente e fiquei cerca de dois meses sem tratamento no Hospital Central do Exército, uma unidade voltada para a saúde que fora também utilizada para a barbárie.

Voltei para casa em Vitória, que foi transformada em uma espécie de prisão domiciliar. O Exército enviava semanalmente um capitão médico para ver se eu estava curado da hepatite e verificar a suspeita de tuberculose. Hepatite medicamentosa contraída no HCE.

Os mesmos que me prenderam, do DOI-Codi da Barão de Mesquita, entre eles o famigerado coronel Paulo Malhães, assassinado pelo seus, como queima de arquivo, foram à casa de minha mãe tentar tirar informações. Diziam que “se eu achava que os tinha enganado, não tinha, não, que eu iria voltar pra lá, que era bom falar logo, que eles já sabiam quem eu era, que iriam barbarizar…”.

Esta ameaça foi feita no instante em que minha mãe foi buscar o meu remédio (placebo pra enganar). Sua permanência (de minha mãe), mesmo contra a vontade dos agentes, ajudou a não terem extrapolado.

Retornar à vida, continuar por outros meios a luta contra a ditadura ou ir para o exílio?

Um bispo me propôs que fosse para o Chile. Resolvi ficar. E como me inserir? Para trabalhar pediam atestado de “Bons Antecedentes”, e nele saía ora que respondia a diversos Inquéritos Policiais Militares (IPMs), ora que estava condenado. Entregava o protocolo e ia embromando, mas o SNI me descobria. A demissão era imediata, às vezes ocorria um mês após ter sido promovido. No Espírito Santo, até carteira de motorista me foi negada.

A maior violência é a perda dos sonhos e dos projetos pessoais. Toda a vida muda. Casei por consequência. Ainda na prisão fiquei formalmente noivo, uma proteção moral à companheira. Fruto desse casamento, meus três filhos nasceram na década de 70. Ainda vivíamos sob ameaças, demissões de empregos, companheiros sendo sequestrados. Sequelas foram deixadas.

Durante esse período, não sabia distinguir o que era real perseguição e o que era paranoia.

Não me tornei o profissional que queria ser (psicanalista), mas, sim, do que era possível. Passei a trabalhar com informática, administração e direito, não por vocação ou por projeto, mas porque foi possível fazer isso sem abrir mão de lutar até o fim contra a ditadura.

Até 1988 fui monitorado e prejudicado, mesmo quando, cansado de demissões, tornei-me empresário do setor de informática em 1984. Já prestando serviços, por meio de licitação, à Petrobras, o gabinete de segurança dessa empresa tentou me impedir de continuar.

A vida em ditadura leva a todos – combatentes ou não -, sem exceção, aos paroxismos da natureza antropológica, tanto aos extremos do lado carbonizado (instintos mais primitivos) quanto aos extremos do lado luminoso (solidariedade e heroísmo).

Quando em palestra, muitos jovens me perguntam como conseguimos persistir por tanto tempo e nos chamam de heróis, digo que não fomos uma geração de heróis, fomos uma geração de sonhos.

Para lutar contra a tirania não é necessário ser herói, é direito e dever. Mas tínhamos um sonho. Lutávamos por um projeto de nação, através das reformas de base. Vivíamos uma experiência democrática rica, parcelas do povo e governo em uma simbiose.

O golpe ilegal e ilegítimo ceifou esse processo, estabeleceu uma ditadura das mais cruéis, que vigeu por 21 anos e mais cinco de transição, intercurso este que prejudicou indelevelmente o desenvolvimento e a maturidade do país.

Na história do Brasil tivemos várias quadras autoritárias seguidas de estações democráticas, sob conspirações e atentados golpistas. Nessas sucessões nunca ocorreu a ruptura, a aurora democrática foi sempre carregada das sombrias nuvens do passado.

Somente realizando a sua justiça de transição, o Brasil poderá retomar o curso da sua história democrática. Para tanto, é mister que o Estado cumpra as 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

A ditadura é a árvore podre da nossa história. Todos os seus frutos foram ou ainda estão contaminados dos venenos das graves violações aos direitos humanos.

Quebrar a cadeia de impunidade, começando por Bolsonaro e cúmplices, até os torturadores de ontem e de hoje, deve ser a meta de médio prazo, antes que se esgotem as condições objetivas e subjetivas propícias.

 

Francisco Celso Calmon é ex-preso político e coordenador da Rede Brasil Memória, Verdade e Justiça

 


Comentários

Priscila

02/04/2023 - 11h44

Emocionante e revoltante ler esse relato! DITADURA NUNCA MAIS ainda é pauta, pois não houve Justiça de Transição.

José Nunes

02/04/2023 - 13h43

E ainda hoje querem “parceria ” com os Estados Unidos.

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