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RESISTÊNCIA

Se aprovado, Marco Temporal expulsará milhares de indígenas de suas terras; retomadas são respostas a ataques do agronegócio e governo Bolsonaro

Foto. Rafael Vilela/ Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil)

11 de março de 2022 - 15h11

A fronteira capitalista e os povos indígenas

 

Por Ana Ferraz

Hoje, no Brasil, a fronteira capitalista avança sobre regiões de floresta, cerrado e campos ainda não explorados pela lógica da mercadoria. Para garantir este avanço, o governo brasileiro busca criar formas legais para justificar o crime de etnocídio.

Buscando uma forma de legalizar todos os crimes que pretendem cometer nesse avanço, os ruralistas tentam aprovar a tese do marco temporal, que ameaça a existência dos povos indígenas que vivem da relação que estabelecem com seus territórios.

A tese do Marco Temporal é um dos muitos ataques anti-indígenas no Brasil, que se aprovado, aprofundaria a vulnerabilidade de todas as terras indígenas demarcadas após 1988, ano da promulgação da Constituição Brasileira, que reconhece os direitos à autodeterminação dos povos nativos, com suas concepções próprias e formas de organização social e política, suas diferenças culturais e linguísticas, em acordo com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

Dada a gravidade do tema, mesmo com a pandemia de Covid-19, o movimento indígena organizou, no segundo semestre de 2021, o Levante pela Terra, acampamento dos diferentes povos indígenas no Brasil defendendo “Terra, Vida e Demarcação já!”. Apesar da exuberante presença dos diferentes povos no planalto central do país, o Supremo Tribunal Federal adiou a votação para este ano. 

O agronegócio brasileiro, com seus representantes no Executivo e no Parlamento, busca criar formas de legitimar os crimes de ecocídio e de etnocídio que vem cometendo. Produzindo estudos sobre como normatizar atividades agrícolas de larga escala em terras indígenas, o que é proibido por lei, cogitam mesmo a hipótese de que o país deixe de firmar a Convenção 169 da OIT.

Está claro que o projeto é o extermínio de qualquer outra forma de vida que não se adeque ao projeto da monocultura para exportação. Os custos em termos de espécies extintas, de leitos de água contaminados, assoreados, do fim de ecossistemas e formas de vida são imensos.

Esse encontro entre lógicas que armam mundos diferentes é violento e assume muitas formas hoje: a militarização da Funai; a expansão do agronegócio e os projetos de infraestrutura associados, construindo rodovias, ferrovias, fazendo hidrelétricas; a aproximação dos proprietários rurais das terras indígenas desmatando, pulverizando veneno, construindo falsas cooperativas para burlar a lei que proíbe o arrendamento de terras indígenas, dividindo comunidades e criminalizando seus líderes.

Desmatamento, envenenamento das águas, empobrecimento da terra e extinção das espécies que conhecem e com as quais vivem são as consequências desse avanço. 

Na dispersão dos povos indígenas e suas aldeias pela Amazônia, o Brasil Central e o aquífero Guarani, os rios são fundamentais. A vegetação das matas ciliares dos rios e seus afluentes guardam inúmeras espécies conhecidas pela farmacopeia desses povos. Suas noções de corpo e pessoa, sua abertura e plasticidade, ressaltadas na literatura antropológica, sublinham sua atenção às relações de alteridade dadas no território.

Seu conjunto mitológico considera os outros seres como sujeitos, os seres subaquáticos, a onça, os pássaros, por exemplo, são observados, estudados, pensados como humanos. O centro da vida social está na relação com esses outros, os rios, a mata, os animais que guardam algo da humanidade por serem vistos como ancestrais. 

A própria floresta é produto dessas formas de habitar, conhecer, selecionar, caminhar e  semear espécies. São tais modos de vida que resistem, são eles também que armam perspectivas animadas por outras ontologias diferentes da Ocidental, com as quais deveríamos aprender.

As retomadas de terras são um índice do grande processo de descolonização que se viveu na América Latina nas últimas décadas. Nas audiências da Comissão Nacional da Verdade, os povos guarani do Mato Grosso do Sul denunciaram o crime de remoção de populações para liberação de terras.

Por décadas esses povos viveram em reservas superpopulosas, onde os conflitos entre povos diferentes, parentelas inimigas, o suicídio juvenil e o alcoolismo floresceram. As retomadas são o movimento populacional de algumas parentelas de abandono de tais condições de vida e o retorno à terra onde se nasceu, onde estão enterrados os ancestrais.

A história das entradas coloniais no Brasil é a história da liberação de terras indígenas para sua redução, desde o século 16 com a ação jesuítica. No Mato Grosso do Sul foi Getúlio Vargas quem criou a Colônia Agrícola Nacional Dourados, em 1943, distribuindo terras para a colonização no centro-oeste brasileiro.

O incentivo aos colonos, sobretudo gaúchos, povoa as terras de semear e caminhar dos guarani kaiowá. Este caso pode ser pensado como exemplar no entendimento do conflito agrário brasileiro vivido hoje pelos povos indígenas.

As disputas judiciais no caso das retomadas são inúmeras e imensas. Uma boa parte das terras recuperadas depois de 1988 ainda não estão homologadas, algumas esperam há décadas. Os povos guarani, do Mato Grosso do Sul, tendo sido removidos de suas terras originárias pela ditadura militar nos anos 1970, foram levados para as reservas e postos indígenas criados ainda nos anos 1920 e 1930, pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio, no momento das primeiras ondas coloniais para a liberação de terras no Brasil central. 

O esgotamento das terras sob a monocultura, os desertos verdes, se opõe à riqueza da diversidade das formas de vida nas terras indígenas. A crise ecológica, as dificuldades para a reprodução da vida no planeta, deveria ser evidência, para os olhos atentos à vida, de que algo está errado.

Aprender com os povos que por milênios desenvolveram suas formas de vida, seus conhecimentos, sua ética, em conexão respeitosa com todos os outros seres com os quais coabitamos, deveria ser o objetivo dos que prezam por um caminho ainda na Terra.

 

Ana Ferraz é doutora em Sociologia e tem pós-doutorado em Antropologia Social, ambos pela USP (Universidade de São Paulo)

 


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