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GENOCIDA

Juiz de qualquer parte do mundo pode mandar prender Bolsonaro por crimes contra humanidade

28 de julho de 2022 - 02h09

O Auschwitz de Bolsonaro

 

Por Marcio Sotelo Felippe

Prepara-se no Congresso uma escandalosa  emenda constitucional para criar o  cargo de senador vitalício destinado a  ex-presidentes e assim garantir imunidade a Jair Bolsonaro após sua provável  derrota eleitoral.  A vice-procuradora geral da República, Lindôra Araújo, pediu o arquivamento do que foi apurado  pela CPI da Covid, que  responsabilizou  o presidente por  crimes na condução da pandemia do coronavírus que resultaram em centenas de milhares de mortes. Segundo ela, Bolsonaro agiu de acordo com  “convicções sinceras”. A tese poderia inocentar  nazistas  perpetradores do Holocausto que tivessem a “convicção sincera” de que o extermínio dos judeus era benéfica para a humanidade.

Bolsonaro agiu com plena consciência de que sua conduta provocaria  milhares de mortes ao adotar  a  “tese”  assassina da imunidade de rebanho, a  estratégia de propagação do vírus e  provocar atraso na compra de vacinas.

A CPI constatou  a  formação de um “gabinete paralelo”,  constituído por médicos, políticos e empresários  que assessorava o presidente em ações que contrariavam as recomendações do Ministério da Saúde (então conduzido por Henrique Mandetta) e as orientações da  comunidade científica.  O objetivo fixado pelo gabinete paralelo era a  “imunidade de rebanho”.

Bolsonaro adotou por conveniência política  a tese da “imunidade de rebanho”. Uma falácia científica que assumidamente acarretaria perda de milhares de vidas.  A população deveria se contagiar para que se atingisse imunidade natural  o mais rapidamente possível porque, afinal, “todos vamos morrer”.   Os que tinham, como ele (!), condição de atleta sentiriam no máximo uma “gripezinha”  ou um “resfriadinho”, palavras que correram o mundo.  Isso desvelava  a eugenia que faz parte de sua visão de mundo.  Os  não  atletas, idosos e portadores de comorbidades que morressem.   O jornalista Bruno Boghossian apurou que, em março de 2020, Bolsonaro fora advertido de que em seis meses haveria cerca de 100 mil mortes. Na semana do célebre pronunciamento pela TV, o  da “gripezinha”, 24 de março, havia 46  mortos. No final de setembro, seis meses depois, eram 143.952 mortos.   O  móvel dessa conduta também era a  necessidade de cultivar uma base de apoio com um discurso que apelasse para a irracionalidade da parcela fascista,  mantendo-a coesa. Para isso é preciso ter bandeiras.

A imunidade de rebanho era pseudociência. Gritantemente rejeitada pela comunidade científica.   Natália Pasternak, em depoimento à CPI,  esclareceu que a imunidade geral  era alcançada somente pela vacina, como ocorreu  no caso da varíola, e não pela transmissibilidade natural do vírus. Segundo Claudio Maeiorovich, também na CPI,  no cenário da covid-19 a teoria da imunidade de rebanho pela transmissibilidade da doença levaria a uma quantidade tão grande de doentes e mortos que não seria sequer eticamente aceitável cogitá-la.

Vejamos o que dizia o   Diretor-Geral da OMS,  Tedros Adhanom Ghebreyesus,  sobre imunidade de rebanho:

 “A imunidade coletiva se alcança protegendo as pessoas contra o vírus, não as expondo ao vírus. Nunca na história da saúde pública recorreu-se à imunidade coletiva como estratégia para responder a um surto, muito menos a uma pandemia. Isto suscitaria problemas científicos e éticos. Em primeiro lugar, não sabemos o suficiente sobre a imunidade ao vírus da Covid-19. A maioria das pessoas infectadas pelo respectivo vírus desenvolve uma resposta imunitária durante os primeiros dias, mas não conhecemos a intensidade nem a duração desta resposta, nem a forma pela qual pode variar de uma pessoa a outra. Temos algumas pistas, mas não o panorama completo. Por outro lado, há casos conhecidos de pessoas infectadas pela segunda vez pelo vírus da Covid-19. Em segundo lugar, a imensa maioria das pessoas na maioria dos países segue sendo suscetível a este vírus. Os estudos de soroprevalência sugerem que, na maioria dos países, as pessoas infectadas pelo vírus da Covid-19 representam menos de 10% da população. Por conseguinte, deixar que o vírus circule descontroladamente supõe infecções, sofrimentos e mortes desnecessários. Ademais, embora as pessoas idosas e as pessoas com enfermidades pré-existentes sejam mais expostas ao risco de doença grave e morte, não são as únicas que correm este risco. Faleceram pessoas de todas as idades” [1]               

Pesquisa elaborada pelo Cepedisa, Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP,  se propôs a verificar a hipótese de que havia no Brasil uma “estratégia de disseminação da Covid-19”, promovida de forma sistemática em âmbito federal “tendo como fontes normas federais, jurisprudência, discursos oficiais, manifestações públicas de autoridades federais e busca em plataformas digitais”. A coleta de dados tomou o período de 03/02/20 a 28/05/21 e concluiu que houve “empenho e a eficiência em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível”. Tratava-se de alcançar a imunidade de rebanho. [2]

Ainda em outro trabalho de Deisy Ventura et al temos:

O ‘filtro ideológico’ é a hipótese mais plausível para explicar que uma tese falsa e antiética seja cogitada como política pública de saúde em certos países. Sob tal filtro, a pandemia seria percebida como expressão de uma “seleção natural”, capaz de “purificar” a espécie humana graças à “sobrevivência dos mais fortes”,  ideário amiúde denominado ‘darwinismo social’. Amplamente difundido nas últimas décadas, ele busca legitimar o vertiginoso crescimento das desigualdades sociais, como se as diferenças entre os seres humanos resultassem da vitória do talento, das capacidades naturais e até mesmo espirituais dos indivíduos, e o sacrifício dos mais frágeis fosse necessário, em benefício do conjunto da sociedade. Assim, a “seleção natural”, que no passado ocorria por meio de epidemias e guerras, teria passado a realizar-se também por meio da competição econômica. Em suma, darwinismo social e neoliberalismo complementam-se para impor ‘uma hierarquia de valores que dá prioridade à economia em relação à vida humana, em todo caso a do mais fraco’. Por isto, a falsa tese da imunidade de rebanho por contágio foi chamada de ‘neoliberalismo epidemiológico’: tal como a crença incondicional no livre mercado, ela supõe que a melhor maneira de enfrentar uma epidemia é deixá-la avançar com freios mínimos, resultando, do mesmo modo que o neoliberalismo econômico, em extrema violência contra os mais vulneráveis, que inclui sofrimento físico e mental, e potencialmente sequelas e morte . Quando cotejamos a capacidade de transmissão do Sars-CoV-2 e as taxas de mortalidade e de letalidade da Covid-19, e os contingentes populacionais que ela alcançará caso não seja contida em determinados países, constatamos que, ao fim e ao cabo, a ‘imunidade de rebanho é outro nome para assassinato em massa’”[3]

A propaganda de remédios que desde logo se revelaram inócuos ou nocivos (chegando a provocar mortes pela ingestão) como hidoxicloroquina,  cloroquina, ivemerctina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina [4] vinculava-se à estratégia de contaminar rapidamente a população.  Bolsonaro cultivava-a ideologicamente: “quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína”, o que certamente dava curso à utilização desses medicamentos em parte da população.

Segundo o  relatório da CPI, “ficou claro que houve a politização do chamado tratamento precoce, em que o uso de certos fármacos ineficazes se tornou um cavalo de batalha por certos atores políticos, a começar pelo presidente da República que, ainda em 21 de setembro de 2021, em seu discurso de abertura da Assembleia da Organização das Nações Unidas, continuava a defender o uso de cloroquina, o carro-chefe do tratamento precoce”.

Em depoimento à CPI, o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta afirmou que o governo federal tinha consciência de que estava induzindo o uso de medicamento sem evidência científica. Outro ex-ministro da Saúde, Nelson Tech, declarou que a responsabilidade pela persistência na indicação de tais remédios seria exclusivamente do presidente Jair Bolsonaro, “o que motivou sua saída do Ministério, pois divergia do presidente em relação à defesa da cloroquina”.

O Brasil representa  2,7% da população mundial. O número  de mortos considerando a média mundial deveria ser de 56 mil pessoas até janeiro de 2021, mas era então de 212.582.  Segundo a pesquisadora Deisy Ventura, cerca de 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas até junho de 2021, isto é, quatro a cada cinco mortes.

A campanha contra a vacina  seguiu  a  lógica fascista. A  vacinação rápida resolveria o alegado prejuízo político pela queda da atividade econômica, mas  interessava manter tensionada e mobilizada  a base social fascista. O relatório da CPI da Covid concluiu que “a aquisição de imunizantes não foi uma prioridade do Ministério da Saúde, que postergou ao máximo a conclusão das negociações”;   “optou-se por priorizar a cura via medicamentos, e não vacinação, e expor a população ao vírus, para que fosse atingida mais rapidamente a imunidade de rebanho pela contaminação natural”.

Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, disse à CPI que o Brasil poderia ter sido o primeiro país do mundo a começar a vacinação. Em julho de 2020, o Instituto Butantan fez uma oferta de 60 milhões de doses a serem entregues no último trimestre de 2020, sem resposta. Em outubro desse mesmo ano nova oferta de 100 milhões de doses, sendo 45 milhões até dezembro de 2020, 15 milhões até o final de fevereiro e 40 milhões até maio. Bolsonaro interveio e desautorizou essa negociação:  não seria comprada a “vacina chinesa”.

A vacinação no Brasil somente se iniciou em 17 de janeiro para os mais idosos, evoluindo lentamente para  outras faixas etárias.  No mundo, começou em 8 de dezembro de 2020. A regulamentação pela Anvisa deu-se  em dezembro de 2020. Em outros países já estava regulamentada desde meados de 2020. Segundo a CPI,  “nas negociações da Coronavac, foram dois meses de atraso e 45 milhões de doses perdidas em 2020. Nas negociações da Pfizer, foram três meses de atraso e 4,5 milhões de doses perdidas em dezembro de 2020 e no primeiro semestre de 2021 (1,5 milhões em dezembro de 2020 e 3 milhões no primeiro trimestre de 2021)”.

Teve-se um ataque dirigido à população indígena,  de acordo com o parecer da Comissão de Juristas, constituída por Miguel Reale Jr., Sílvia Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wunderlich,  incorporado ao relatório da CPI da COVID:

Há elementos probatórios razoáveis para acreditar que houve, por parte do Governo Federal, em especial por parte do presidente da República e do ministro da Saúde, um ataque dirigido contra a população indígena, através de uma política de Estado de adoção de medidas concretas e de omissões deliberadas que resultaram no número de contaminações e de mortos entre as populações indígenas proporcionalmente superior ao que atingiu as populações urbanas; há indícios probatórios razoáveis para crer que esse ataque deliberado contra a população civil foi generalizado, na medida em atingiu vários grupos e comunidades indígenas, indiscriminadamente, como foi implementado de forma sistemática, obedecendo a um planejamento deliberado, reiterado e executado de forma uniforme, que só não causou danos ainda maiores em face da pronta intervenção do Supremo Tribunal Federal e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Houve uma explosão de casos de covid em Manaus no final de dezembro de 2020 e janeiro de 2021. O Amazonas havia sido cobaia de um aplicativo denominado Trate Cov, de responsabilidade da médica Mayra Pinheiro,  que possibilitaria o diagnóstico de covid e induzia o usuário a utilizar o “tratamento precoce”, hidroxicloroquina, azimotricina etc.  Nos dias 14 e 15 de janeiro de 2021 pacientes entubados morreram por falta de oxigênio. Em sua live semanal, Bolsonaro dizia no dia 17 de janeiro de 2021:

“Não tem efeito colateral nenhum a questão da hidroxicloroquina (..) Olha o que está acontecendo em Manaus? O Pazuello chegou lá, o nosso ministro da Saúde e interviu (sic) rapidamente e determinou o tratamento precoce. (…) Há uma diferença entre a hidroxicloroquina, que tem comprovação científica e essa vacina que nunca foi aplicada em ninguém. Não sabemos seus efeitos colaterais. A hidroxicloroquina não tem, sequer arritmia tem. (…)Mesmo sendo execrado continuo falando na ivermectina, na hidroxicloroquina para combater a Covid-19 (grifei).

Cautelar  do ministro Ricardo Lewandowski determinou que o governo federal promovesse de imediato todas as ações para debelar a  crise sanitária instalada em Manaus, “em especial suprindo os estabelecimentos de saúde locais de oxigênio e de outros insumos médico-hospitalares para que possam prestar pronto e adequado atendimento aos seus pacientes”. O referido  parecer da Comissão de Juristas  concluiu que os acontecimentos de Manaus constituíram “um ataque à população civil que em termos pandêmicos se mostrou generalizada e sistemática, causando um número ainda não suficientemente apurado de mortes e lesões corporais”.

Artigo  de David Scheffer, embaixador norte-americano que participou das negociações que resultaram no Estatuto de Roma,  dizia  já  em  abril de 2020:

O erro de saúde pública pode ser elevado ao patamar de crime contra a humanidade, como definido no ER do TPI: um “ato desumano… que causa intencionalmente grande sofrimento, ou afeta gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental” que é “cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque”. Com o número de mortos por Covid-19 ainda aumentando em índices alarmantes em muitos países, inclusive nos Estados Unidos, a noção não é tão forçada. Por exemplo, líderes políticos poderiam ser apontados como perpetradores de um crime contra a humanidade que resulta em dezenas de milhares de mortes porque eles intencionalmente falharam em providenciar a testagem do vírus a tempo e em grande escala, ou falharam na aquisição de equipamentos de proteção individual para os trabalhadores da saúde, ou deixaram de ordenar medidas essenciais de distanciamento social.

Segundo Scheffer, ainda nos primórdios da pandemia, quatro meses após declarada, os atos que poderiam caracterizar  o erro de saúde pública passível de enquadramento  como crime contra a humanidade eram  ausência de testagem, não aquisição de equipamentos e a omissão consistente em não  determinar medidas de distanciamento social. Tudo o  que ostensivamente Bolsonaro fez.

A CPI apontou os  crimes de tentativa de homicídio,  perigo para a vida ou saúde de outrem, epidemia,  infração de medida sanitária preventiva, omissão de notificação de doença, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular,  falsidade ideológica,  uso de documento falso,  emprego irregular de verbas ou rendas públicas,  corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa,  usurpação de função pública,  tráfico de influência, corrupção ativa,  fraude em licitação ou contrato, fraude processual, crime de organização criminosa e crime contra humanidade nos termos do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, art. 7º, 1, k: Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental. 

Notáveis  trabalhos jurídicos sustentaram ter havido crime contra a Humanidade na atuação de Bolsonaro: o já citado parecer elaborado pela comissão constituída por Reale Jr., Steiner, Lobo e  Wunderlich a pedido da CPI;  “Pandemia e crimes contra a humanidade: o ‘caráter desumano’ da gestão da catástrofe sanitária no Brasil”, Deisy de Freitas Lima Ventura, Cláudia Perrone-Moisés e Kathia Martin-Chenut; [5]; Parecer da Comissão Especial de Juristas da OAB Nacional para Análise e Sugestões de Medidas de Enfrentamento da Pandemia do Coronavírus, comissão  composta por Carlos Ayres Britto, Miguel Reale Jr., Carlos Roberto Siqueira Castro, Cléa Carpi, Nabor Bulhões, Antonio Carlos de Almeida Castro e Geraldo Prado. Foram valiosas contribuições para registro histórico e contém fundamentos suficientes  para a persecução penal do presidente e de seus colaboradores, seja por normas de direito interno, seja por normas de Direito Penal Internacional.

O  parecer da Comissão da OAB é taxativo: houve homicídio praticado na modalidade comissivo por omissão  por  não terem sido tomadas medidas que protegeriam a população. É a modalidade em que o agente tem o dever de evitar o resultado e se abstém, como nos exemplos clássicos do médico e do salva-vidas que por obrigação legal devem agir para impedir o resultado.

Mas mais do que isso. Não só por omissão,  mas por condutas ativas, positivas, que tinham o sentido de levar a população a se contaminar, por palavras ou gestos, como incentivar remédios comprovadamente ineficazes (proporcionando falsa sensação de segurança)  ou disseminar descrédito em relação à vacina com notícias falsas. Bolsonaro chegou a associar a vacina à Aids, dentre dezenas de exemplos. Promoveu aglomerações sem máscaras incessantemente,  chegando ao absurdo de retirar a máscara de uma criança que estava em seus braços. Foi um ataque generalizado e sistemático à população, omissivo, comissivo e comissivo por omissão, em  grande proporção e planejado. Bolsonaro e seus cúmplices  sabiam que o resultado certo era a morte de milhares de pessoas.

Aspecto pelo qual os trabalhos jurídicos  referidos merecem certa crítica consistiu em desconsiderar normas cogentes (obrigatórias) de Direito Penal Internacional que prescindem de acordos, convenções ou tratados, fixando-se apenas na limitada esfera convencional do Estatuto de Roma. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969)  dis­põe no artigo 53, sob a  rubrica “Tratado em Conflito com Norma Impe­rativa de Direito Internacional Geral” (jus cogens) o seguinte:

É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comu­nidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modifi­cada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.

Isto significa que no Direito Internacional há uma  hierarquia de normas. No topo estão as normas do jus cogens, vinculantes e  não necessariamente estabelecidas por tratados, convenções ou acordos.

“Existem muitas regras de direito internacional consuetudinário que se situam em uma categoria superior e que não podem ser deixadas de lado ou modificadas pelos Estados contratantes; é mais fácil ilustrar essas regras do que defini-las. São regras aceitas expressamente por tratados ou tácitamente pelo costume, como necessárias para proteger os interesses públicos das sociedades ou para manter os padrões de moralidade pública reconhecidos por eles. Por exemplo, a pirataria é estigmatizada pelo direito consuetudinário internacional como crime, no sentido de que um pirata é considerado hostis humani generis e pode legalmente ser punido por qualquer Estado em cujas mãos ele caia. Pode haver alguma dúvida de que um tratado em que dois Estados concordam em permitir a pirataria em uma determinada área, ou contra os navios mercantes de um certo Estado seria nulo? Ou um tratado pelo qual dois aliados concordam em fazer a guerra por métodos que violam as regras consuetudinárias da guerra, como o dever de não matar o inimigo vencido?” [6]
“Existem certas formas de ação ilegal que nunca podem ser justificadas (…) São atos que não são apenas ilegais, mas malum in se, como certas violações dos direitos humanos, das leis da guerra, e outras normas que têm a natureza de jus cogens — isto é, obrigações de caráter absoluto, que não dependem do cumprimento correspondente por outros, mas são exigíveis em todas as circunstâncias”[7]

Crimes contra a humanidade como  jus cogens foram objeto de construção e desenvolvimento ao longo do século 20 tendo como fontes normas consuetudinárias, princípios gerais de direito, normas de proteção aos direitos humanos. Já na Convenção da Haia, de 1907,  que versava sobre costumes de guerra, invocava-se a “proteção dos princípios de Direito Internacional como resultam dos usos entre povos civilizados, das leis da humanidade e os ditados da consciência pública”.[8]. O Tratado de Sèvres continha uma cláusula de responsabilização dos perpetradores do genocídio armênio (que nunca teve eficácia). O Estatuto do Tribunal de Nuremberg “reuniu sob a noção de crimes internacionais tanto os delitos relativos ao direito humanitário (…) como o crime contra a humanidade, o qual é parte do direito internacional dos direitos humanos”[9]. Na redação do Estatuto de  Nuremberg crimes contra a humanidade eram “homicídio, extermínio, escravidão, deportação e outros desumanos cometidos contra a população civil” [10]. A ONU consolidou em 1950 os princípios do Tribunal de Nuremberg como documento de Direito Internacional.

Desde a Segunda Guerra Mundial, uma série de instrumentos internacionais e regionais sobre a proteção dos direitos humanos foram elaborados e entraram em vigor.561 Esses instrumentos, juntamente com inúmeras Resoluções das Nações Unidas, reafirmam e dão suporte à afirmação de que os interesses humanos protegidos, cujas violações são criminalizadas na CAH, tornaram-se jus cogens. A conexão entre a proteção internacional dos direitos humanos e a criminalização internacional de suas violações mais graves é evidente, na medida em que todos os crimes internacionais incorporam o que se encontra no direito internacional dos direitos humanos como interesses humanos protegidos.[11]

A abordagem dos crimes contra a humanidade cometidos por Bolsonaro não deve, pois,  ter  apenas enfoque no Estatuto de Roma, passando ao largo do jus cogens  e do consequente princípio da jurisdição  universal pelo qual qualquer país e qualquer juiz pode proceder à persecução criminal.  O Tribunal Penal Internacional padece de graves limitações. Tem jurisdição apenas sobre nacionais dos Estados contratantes, com exceção da hipótese de a denúncia ser apresentada pelo Conselho de Segurança da ONU. Os Estados Unidos não se vincularam à jurisdição do TPI. No Conselho de Segurança da ONU tem poder de veto Estados Unidos, Rússia, França, Inglaterra e China. Além das  limitações jurídicas, o TPI é lento, burocrático e já foi chamado de tribunal para africanos.

Evidentemente não deve ser desconsiderado, mas não é o único instrumento de persecução a indivíduos acusados de crimes contra a humanidade. Qualquer Estado pode agir invocando a jurisdição universal independentemente de “nacionalidade ou lugar em que cometida a ofensa ou de qualquer vínculo entre o Estado que processa e o ofensor”[12].

A jurisdição universal para certos crimes não é uma novidade. Desde os primórdios do Estado moderno  piratas são reconhecidos como  hostis humani generis”  e sujeitos à jurisdição universal.

Às vezes, o direito penal é aplicado em virtude de um princípio que reflete a qualidade especial da classe de delitos conhecidos como delicta juris gentium, crimes de direito internacional. Esses crimes ameaçam minar os próprios fundamentos da comunidade internacional esclarecida como um todo; e é essa qualidade que dá a cada um dos membros dessa comunidade o direito de estender a incidência de sua lei penal a eles, ainda que sejam cometidos fora dos limites do Estado e o infrator não tenha nenhuma ligação especial com o Estado […] . Daí, também, o nome “princípio da universalidade”.[13]

Adolf Eichmann foi processado e condenado por um  Estado que não existia no tempo em que cometeu seus crimes. Segundo a Corte Distrital de Jerusalém,

O “direito de punir” o acusado do Estado de Israel deriva […] de duas fontes cumulativas: uma fonte universal (pertencente a toda a humanidade) que confere o direito de processar e punir crimes desta ordem a cada Estado  dentro da família de nações; e uma fonte nacional específica, que dá à nação vítima o direito de julgar qualquer um que ataque sua existência”.[14]

A Corte Suprema de Israel reafirmou o princípio:

Há  plena justificação para aplicar aqui o princípio da jurisdição universal, uma vez que o caráter internacional dos “crimes contra a humanidade”  tratados no presente caso não está mais em dúvida […] A razão básica pela qual o direito internacional reconhece o direito de cada Estado de exercer tal jurisdição em crimes de pirataria – não obstante o fato de que sua própria soberania não se estende ao local do cometimento do delito  e o infrator é nacional de outro Estado ou é apátrida – aplica-se com até mesmo maior força aos crimes acima mencionados”[15]
Não só todos os crimes atribuídos ao apelante têm um caráter internacional, mas seus efeitos nocivos e assassinos foram tão abrangentes e generalizados que abalaram a comunidade internacional em seus próprios fundamentos. O Estado de Israel, portanto, tinha o direito, de acordo com o princípio da jurisdição universal e na qualidade de guardião do direito internacional e agente de sua aplicação, para julgar o recorrente. Sendo esse o caso, nenhuma importância é atribuída ao fato de que o Estado de Israel não existia quando os crimes foram cometidos.[16]

No caso Demjanjuk v. Petrovsky tribunal norte-americano decidiu pela extradição de um guarda de campo de concentração nazista para Israel fundamentado no direito de Israel exercer a  jurisdição universal  por se tratar de “crimes universalmente reconhecidos e condenados pela comunidade das nações”; eram “ofensas contra o direito das nações ou contra a humanidade e a nação acusadora está agindo por todas as nações”.[17]

O ditador Augusto Pinochet foi preso na Inglaterra por força de um mandado expedido pelo  juiz espanhol Baltazar Garzon. Um caso exemplar de aplicação da jurisdição universal envolvendo um ex-chefe de Estado. Para Naomi Roht-Arriaza, professora da Universidade da Califórnia que escreveu um livro sobre o processo Pinochet (The Pinochet effect transnational justice in the age of human rigths) houve no episódio uma revalidação “da justiça universal como uma forma complementar da justiça internacional, paralela ao emergente Tribunal Penal Internacional — o Estatuto de Roma é assinado no mesmo ano da detenção — e aos tribunais ad hoc“. [18]

O relatório da CPI formalizou a evidência incontestável da diretriz assassina que, na verdade, todo  cidadão minimamente informado testemunhou. Se prosperarem as tentativas de conferir imunidade a Bolsonaro, se o TPI persistir em sua lentidão paquidérmica ou não der curso às denúncias já formuladas lá, qualquer juiz em qualquer lugar do mundo poderá se valer desses dados para o devido processamento,  tal como ocorreu com Pinochet.

Em nome da humanidade, do valor da vida e  dos princípios civilizatórios é o que tem que ser feito, seja na esfera convencional do TPI, seja por juízes em algum lugar do mundo, segundo o jus cogens e o princípio da jurisdição universal.

 

[1] Citado no Parecer da Comissão de Juristas presidida por Miguel Reale Jr que assessorou a CPI da Covid

[2] Pesquisa  coordenada por Daysi Ventura, Fernando Aith e Rossana Rocha Reis. https://cepedisa.org.br/wp-content/uploads/2021/06/CEPEDISA-USP-Linha-do-Tempo-Maio-2021_v3.pdf

[3]Deisy Ventura, Claudia Perrone Moisés, Kathia Martin Chenut  em https://www.scielo.br/j/rdp/a/7WGyphhcLskRqBCwBNTt9sn/?lang=pt&format=pdf,

[4] O FDA havia alertado  que a cloroquina e a hidroxicloroquina  apresentavam efeitos cardíacos adversos e efeitos colaterais como lesões nos rins, problemas no fígado e morte.  Combinadas com azitromicina havia duas vezes mais chances de sofrer um ataque cardíaco. Relatório da CPI da Covid, pág. 61

[5] Revista Direito e Praxis, artigo disponível em https://www.scielo.br/j/rdp/a/7WGyphhcLskRqBCwBNTt9sn/, acesso em 23/1/2022

[6] Mcnair, Arnold D.,  apud Bassouini, Cherif, Crimes Against Humanity, Cambridge University Press, 2011.

[7] Fitzmaurice Gerald, apud Bassouini, ob.cit.

[8] Aragão, Eugênio  José Guilherme de,  Crimes contra a humanidade: sistema internacional de repressão em  https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/6563/007_aragao.pdf?sequence=5

[9] Weichert, Marlon Alberto, Justiça Transicional, Coleção para entender direito, Estudio Ed., p. 46.

[10] No Estatuto de Nuremberg ainda eram crimes cometidos em conexão com guerra, o que desapareceu com o desenvolvimento posterior do conceito.

[11] Bassiouni. Cherif,  Crimes Against Humanity (p. 269). Cambridge University Press. Edição do Kindle

[12] Carnegie,  A.R., Jurisdiction over Violations of the Laws and Customs of War, 39 BRIT. Y.B. INT’L L. 402, 405 (1963), apud Bassiouni. Crimes Against Humanity, Cambridge University Press

[13] Feller, Shneur-Zalman Jurisdiction over Offenses with a Foreign Element,  “apud” Bassiouni,  Cherif,  Crimes Against Humanity, Cambridge University Press.

[14] Bassouini, ob. cit, p. 286

[15] id. ib.

[16] id. p. 287

[17] Id., p. 288-289

[18] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/16/internacional/1539652824_848459.html

 

Marcio Sotelo Felippe é advogado e foi procurador geral do Estado de São Paulo


Comentários

Jorge Kayano

29/07/2022 - 07h12

Artigo muito bem fundamentado, que DEVERIA nortear as condutas de órgãos como a PGR, AGU e STF… além, claro, dos congressistas, do ministro(?) da justiça (!)

carlos

28/12/2022 - 10h13

E u acho que qualquer que fosse o presidente da República naquele momento , poderia ficar calado, e não fazer piada com os pacientes em fase terminal, eu estou com falta de ar, por falta de oxigênio, por se só poderia ser alvo de punição por parte de um TPI.

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