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REPRESSÃO

Superior Tribunal Militar escondeu áudios que provam que ditadura torturou opositores

Cena do filme Corte Seco, de Renato Tapajós, mostra como o pau de arara era usado pela ditadura militar para torturar presos políticos

18 de abril de 2022 - 00h01

O som da tortura

 

Por Edson Teles

“Lícia Lúcia Duarte da Silveira desejava acrescentar que quando esteve presa na Oban foi torturada, apesar de grávida, física e psicologicamente, tendo que presenciar as torturas infligidas a seu marido.”

Este trecho é a transcrição de um dos áudios do Superior Tribunal Militar (STM), ouvidos e pesquisados pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Por décadas, as gravações das sessões do STM entre 1975 e 1985 permaneceram censuradas e distantes do conhecimento público.

Mesmo quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou o acesso ao advogado Fernando Augusto Fernandes, o STM simplesmente, ao arrepio da lei, não obedeceu.

No país em que militares têm privilégios das mais variadas estirpes e são destinados “à garantia (…) da lei e da ordem” (Art. 142, Constituição Federal) não é surpreendente que órgãos ligados às Forças Armadas, ou militarizadas, não cumpram a lei.

Os áudios da tortura comprovam não só o que já se sabia sobre a ditadura, um regime cuja razão de governo era a tortura, seja diretamente sobre os corpos aprisionados nas instituição de segurança nacional e pública, seja como a tortura psicológica que o terror dos agentes públicos produziam no cotidiano da sociedade.

Mas os áudios comprovam algo também gravíssimo: um órgão superior de justiça se calou e acobertou os crimes contra a humanidade cometidos pelos militares.

Como se pode ouvir nos áudios, os ministros do STM sabiam da prática comum da tortura e ainda conversavam sobre ela abertamente em suas sessões secretas.

A cena transcrita no início deste artigo se refere a torturas cometidas por militares na Oban, protótipo do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), instituição de repressão política coordenada pelo Exército brasileiro.

O militar que comandou este órgão de repressão foi o então major do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador condenado pela Justiça em 2008, com confirmação da sentença pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2012.

O torturador Ustra é hoje o herói do presidente da República, o que mostra a atualidade da descoberta desses áudios e a importância política de se conhecer essas histórias.

Sob o comando de Ustra dezenas de pessoas foram sequestradas e assassinadas, sendo que mais de 40 deles ainda foram vítimas de desaparecimentos forçado.

O governo Bolsonaro, aos moldes do que fez o STM, esconde arquivos ao decretar sigilo de 100 anos sobre seus atos.

Os trabalhos de identificação de pessoas desaparecidas na Vala de Perus, realizados no Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), a cada identificação realizada, comprova que os corpos identificados perderam a vida no DOI-Codi e foram levados para o IML de São Paulo, onde recebiam laudos falsos de acobertamento das torturas.

Em seguida, em atos criminosos combinados entre polícia, IML e cemitérios, estes corpos eram enterrados ou como “não reclamados”, ou com nomes falsos.

Contudo, infelizmente, as ligações entre o passado de torturas escondido nos áudios do STM e o presente de um governo negacionista e adorador de criminosos vai além de aspectos discursivos.

Uma razão de governo, no sentido de tecnologias de terror contra populações, coletivos e toda a sociedade, permaneceu como prática cotidiana.

As rupturas entre ditadura e democracia não atingiram o modo violento como o Estado continua a lidar com os seus “inimigos”.

Desde o entre guerras até o fim da Guerra Fria, testemunhou-se a emergência da teoria e do pensamento neoliberal visando evitar a ingovernabilidade de uma democracia popular.

A solução encontrada passou pela construção de um Estado forte, através da aliança entre as normas de mercado e o autoritarismo.

Essa foi a forma mais eficaz de proteger a democracia liberal da política das massas.

No Brasil, como em outros países da América Latina, a opção para se combater o inimigo, aqueles que defendem e lutam por uma radicalização da democracia, foi a montagem de uma ditadura militarizada e extremamente violenta.

Dessa forma, as diferenças de violências, como as que experimentamos entre as ditaduras e as democracias na América Latina, se configuram como graus de uma mesma prática e não divergências quanto à natureza do Estado.

Para o neoliberalismo, entre a ditadura e a democracia não há diferença de valor, mas de eficácia na garantia do direito privado das corporações e grandes interesses econômicos e da ordem de mercado.

A violência de Estado atua para fortalecer a racionalidade capitalista contra os seus inimigos, sejam os que se auto declaram opositores, sejam os que oferecem, pelo caráter originário e cotidiano de uma experiência coletiva, risco para a manutenção da normativa imposta.

A violência que se libera não é necessariamente a legitimada pelas leis do Estado de Direito, mas a da brutalidade que se utiliza do Estado para atacar os esforços de democratização.

Constrói-se um Estado forte e violento para retirar o caráter político da decisão em democracia, depositando o governo efetivo nas mãos de algum conselho de tecnocratas e no suporte da força militar.

Toda a violência acionada pelo Estado, somada a de milícias e grupos de intolerância, manifesta uma forma de combate distinta de uma guerra civil clássica.

Utiliza-se de divisões antigas e tradicionais, de sociedades nascidas de práticas de dominação e expostas a cisões culturais, sociais e políticas.

O enraizamento desses conflitos nas várias camadas de sociabilidade permite às estratégias de controle uma maior capilarização para os mecanismos de controle e vigilância.

Esse modelo de governo dos corpos tem direcionado os diversos dispositivos policiais, militares, jurídicos, médicos, tecnológicos para a atividade da guerra contra o inimigo.

Controlar o inimigo e garantir a segurança concede ao governo as intervenções de exceção, desviando-se dos limites estabelecidos pelas leis.

É a exceção autorizada como permanente, fazendo da militarização a autoridade de governo e dos grupos de direita e das milícias os despachantes da violência liberada.

Atualmente, o presidente Bolsonaro navega em uma política econômica de mercado destruindo o que é bem público e favorecendo as corporações e o agronegócio, ao mesmo passo em que elogia a ditadura, homenageia torturadores e, em nome de Deus, autoriza a ação policial ilícita.

Com um modelo de governo transbordando os limites de um Estado de Direito e pisoteando a Constituição em vários aspectos, o Estado se fortalece ainda mais.

Observa-se que a democracia manteve um modo de governar que favoreceu a combinação estratégica da razão neoliberal com os valores e as estruturas racistas e classistas historicamente constituídas no país.

A violência de Estado, com as características de uma guerra civil, se justifica como ação de legítima defesa contra os inimigos maiores do país: opositores, classe dos sem propriedades, corpos negros ou anti-patriarcais, sujeitos atípicos, gêneros não-binários e todes que escapem à normalidade da ordem imposta.

Lembro-me e trago à tona o lema de uma campanha do início dos anos 2000, de movimentos de direitos humanos: é preciso desarquivar o Brasil!

 

Edson Teles é professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do CAAF (Centro de Antropologia e Arqueologia Forense).


Comentários

Anita Simão

18/04/2022 - 11h09

Só tenho uma coisa a dizer: Meu Deus, o que mais vamos achar???

HÉLIO APARECIDO NUNES

18/04/2022 - 12h15

E o governo continua insistindo que não houve ditadura e quem ouviu ou viu as últimas declarações do vice Amilton Mourão, é de disparar o coração. Infelizmente, muita gente acredita nessas mentiras descabidas. Justiça às vítimas das atrocidades do governo militar.

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