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GORILAS

Tortura foi alicerce das forças de repressão da ditadura militar nos Anos de Chumbo

Cena de tortura no pau de arara do filme Corte Seco, de Renato Tapajós

29 de maio de 2022 - 14h31

Porão, não! Alicerce

 

Por Manoel Cyrillo de Oliveira Netto

Todos reuníamos na padaria do Álvaro, na Homem de Melo, Perdizes, em São Paulo. A roda era gigante, alegre, barulhenta. E, como em absolutamente todas as turmas de bairro, de norte a sul do país, rolava de tudo, e a nossa turma, a da Padaria, não seria diferente, não seria mesmo.

Porém, quando disse que “rolava de tudo”, nem pense em droga. Nos anos sessenta, a droga era o álcool. A cachaça.

– Álvaro, põe uma pinga com groselha para mim (pinga com groselha era a bebida mais barata e uma delícia!).

– E outra pra mim também.

O que tinha de diferente naquela turma era o nosso pessoal, o grupinho do João Bode. Em 1961, atendendo ao chamado de Brizola e de sua Campanha da Legalidade, o João Bode saiu de São Paulo, com uns poucos trocados no bolso, e foi até Porto Alegre para se engajar na resistência ao golpe militar. Os milicos não queriam deixar o Jango tomar posse!

Em alguns trechos de sua viagem, pegou carona com caminhoneiros, em outros, até de trem ele andou. Já no Rio Grande, não precisou de muito esforço. Foi transportado pela Frota da Legalidade (movimento estruturado no interior gaúcho, onde voluntários transportavam em seus veículos particulares, outros voluntários, vindos de todo o país, até a capital, até o Palácio Piratini).

Assim o João mergulhou de cabeça, em Porto Alegre, na resistência – e todo aquele povaréu liderado por Brizola, entrincheirado no Palácio do Governo, barrou o golpe e o Jango foi empossado (povo na rua, não seria este o caminho de hoje, o caminho atual?).

O golpe militar só pode acontecer anos depois, em 1964.

Com a renúncia do Jânio Quadros, os milicos golpistas (sempre a mesma história…) não queriam deixar o João Goulart tomar posse.

Imaginem vocês, o Jango, o vice-presidente eleito pelo voto popular (voto de papel, voto impresso, viu, general Paulo Sérgio!), não poderia assumir a Presidência – tem cabimento?

Naqueles idos, a eleição para presidente da República e para vice-presidente eram eleições independentes. Isto é, presidente e vice não formavam uma chapa única. E, assim, os eleitos poderiam, portanto, ser de partidos distintos – como era o caso de Jânio e Jango.

Com a jornada para garantir a posse de João Goulart, a consciência política do João Bode cresceu, deu um salto. Ele passou a vislumbrar um novo mundo, tomou consciência das coisas. E ele iniciou um processo de cuidar com rigor de sua formação cultural, intelectual.

Ele leu muito e estudou mais e mais. De repente, ele já estava cursando, simultaneamente, Filosofia e Direito na USP, tornou-se um cara brilhante.

Com o golpe de 64, o João Bode passou a fazer todo um trabalho político junto a gente. E, aos poucos, a Turma da Padaria passou a ter duas alas, a da moçada simplesmente farrista e a dos “socialistas”, como éramos chamados nas amistosas e infindáveis discussões de botequim – também frequentávamos o armazém do Joaquim, que tinha um salão delicioso nos fundos, onde também nos reuníamos.

Éramos muitos, mas com o aprofundamento de nossa formação e de nossa prática, gradativamente o pessoal do João Bode foi se reduzindo. Porém, inacreditáveis quatro daqueles amigos da Homem de Melo optaram por aderir à luta armada e findaram por entrar na ALN, após (sempre sob a batuta do João) a leitura e discussão do livro “Por que resisti a prisão”, do Marigha, do Preto.

Na ALN, militei do final de dezembro de 1968, com o meu ingresso na O, até o dia 30 de setembro de 1969, data de minha prisão.

Fui direto para o GTA (Grupo Tático Armado). Por que Grupo Tático? Porque era urbano, atuava nas cidades. O nosso trabalho estratégico acontecia nas zonas rurais; as cidades apenas cumpriam um papel tático.

Pois bem, no GTA, participei de inúmeras ações, ações de expropriação (o popular assalto a banco), onde levantávamos fundos para custear –com recursos próprios- toda a nossa prática.

Participei de ações de propaganda política, como a tomada da Rádio Nacional (atual Globo de São Paulo), no horário de sua maior audiência, para colocar no ar uma mensagem nossa, rompendo a censura da ditadura.

Fiz ações que mesclavam tanto a propaganda política, como e expropriação. E como acontecia isso? Assaltávamos não uma única agência bancária, mas toda uma zona bancária, onde tinham três ou quatro agências.

Ali, bloqueávamos todo o tráfego e, em vários pontos daquela área, realizávamos pequenos comícios relâmpagos, acompanhados de uma grande panfletagem. Participei também da Captura do Embaixador Americano. Repare bem, falei em “captura”, o sequestro é um crime!

Foram nove meses de GTA. Nove meses de guerrilha urbana pode parecer um período breve pero, na prática de guerrilha urbana, é um longo período de tempo.

Nos manuais sobre a Guerra Revolucionária, há o registro de que o tempo médio de militância dos guerrilheiros urbanos argelinos (durante a luta pela independência) era de quatro meses… quatro.

Com minha prisão (fui preso pela Operação Bandeirantes – o embrião do DOI-Codi e que, em São Paulo, centralizava a repressão desde junho/julho de 1969), como explicar meu ingresso na ALN?

Lógico que poderia ter ficado calado, não falar porra nenhuma… Mas, sob tortura, não tive um comportamento tão heroico assim.

Uma coisa, pelo menos, eu consegui fazer: preservei os meus amigos das Perdizes! Inventei que estudava Arquitetura na FAU (a Arquitetura para mim era apenas um sonho, nunca passei nem perto da FAU) e que havia me engajado no movimento estudantil.

Disse mais, que em uma atividade de formação do movimento estudantil –um curso aberto de Economia Política-, conhecera o Pedrinho*, um militante da ALN (assassinado em janeiro de 1969) e que ele me cooptara para a organização.

Pois bem, fui indiciado e condenado em quatro processos pela Justiça Militar (por falar em Justiça Militar, por que será que não existe a Justiça dos Comerciários ou a dos Bancários ou a do Pessoal da Saúde ou a dos Professores ou a dos Desempregados???).

Nos quatro processos, na “qualificação do réu”, estava lá “Manoel Cyrillo etc. e tal, x anos, estudante de Arquitetura da FAU da USP e o escambau”.

A importância e o crédito que atribuíam à tortura era tamanha, que ninguém teve a pachorra de, ao menos, checar com a USP se eu era um estudante ou não.

Não teve um filho da puta qualquer, seja na Operação Bandeirantes, seja no SNI, seja no Exército, na Marinha ou na Aeronáutica ou, até mesmo, em todas as instâncias da Justiça Militar, seus juízes ou seus promotores, não teve um fdp que duvidasse da informação extraída sob tortura.

Sabe o por quê disso? Porque a tortura não era coisa dos porões da ditadura. Era o seu alicerce!

 

*Este era o nome de guerra do Marco Antônio Brás de Carvalho, o Marquito.

 

Manoel Cyrillo de Oliveira Netto é publicitário, resistiu à ditadura militar, foi guerrilheiro urbano da ALN (Ação Libertadora Nacional), participou de várias ações armadas, entre elas a da captura do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. Preso político, permaneceu encarcerado por 10 anos. Fora da prisão, ganhou a medalha de ouro com a peça publicitária Çuikiri no 37th New York Festivals Advertising Awards, o Festival Internacional de Propaganda de Nova York, e foi recebê-la nos Estados Unidos em 1991.


Comentários

Chico Vieira

30/05/2022 - 03h08

Maneco, não sabia de sua iniciação na vida política daquela época. Comecei na luta estudantil da UBES e acabei na ALN. Logo depois fui para o GTA. Quando fui preso, em novembro de 71, a Operação Bandeirantes estava no

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