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ARTES

China ainda é desconhecida pela maioria dos brasileiros; pintor mais influente viveu incógnito no país

07 de março de 2022 - 01h34

Zhang Daqian e seu jardim no Brasil

 

Por Carlos Alberto Shimote Martins

Uma ideia recorrente do senso comum é aquela que afirma que tudo que é desconhecido causa medo. A China por ser desconhecida para a grande maioria dos brasileiros é por esta razão um país que mais amedronta do que atrai simpatia.

O desconhecimento da China pelos brasileiros ocorre por várias razões. Há em primeiro lugar o distanciamento físico: é um país longínquo, no outro lado do planeta. E esse distanciamento físico fez com que existisse também, como uma espécie de consequência, outro tipo de distanciamento: o distanciamento cultural.

O alfabeto chinês nos é estranho. A língua chinesa nos soa estranha. Os valores culturais chineses nos são estranhos. Os costumes e hábitos chineses nos parecem estranhos. Quase tudo – senão praticamente  tudo – que é característico da China tende a nos causar estranhamento.

E, ainda que haja chineses e seus descendentes a viver no Brasil, a imigração chinesa é relativamente recente se a compararmos com outras imigrações de povos asiáticos no Brasil, como é o caso dos japoneses e coreanos, por exemplo.

Estamos, enfim, menos habituados e acostumados a conviver com os chineses e com a cultura da China do que com os demais estrangeiros que imigraram para o nosso país e transformaram o Brasil num caldeirão de culturas diversas.

Entretanto, no século 21, a China tornou-se um país estratégico, pois é atualmente não apenas o país mais industrializado do planeta e a segunda maior economia do mundo, mas também o mais importante parceiro comercial do Brasil.

Permanecer, deste modo, afastado de um país que se tornou tão importante, e insistir no distanciamento e no desconhecimento da cultura chinesa tornou-se absolutamente contraproducente em nosso tempo.

Aproximar-se da China para melhor conhecer (e compreender) aspectos diversos da cultura chinesa será o objetivo dessa minha colaboração por aqui.

E, para isso, vamos procurar introduzir aspectos culturais da China e da sua história com o intuito de revelar não apenas aspectos desconhecidos, mas também alguns pontos de aproximação do Brasil com a China. É o caso, por exemplo, do pintor e mestre taoísta Zhang Daqian que a despeito de ter vivido no Brasil e de ter uma importância imensa na cultura chinesa contemporânea é praticamente desconhecido por grande parte dos brasileiros.

Zhang Da Qian (a pronúncia é algo como “djang datchian”) é atualmente o mais influente e valorizado pintor da China (uma de suas pinturas foi vendida recentemente por 25 milhões de dólares).  O que poucos brasileiros conhecem – entretanto –  é  que esse artista único (e tão peculiar) viveu durante quase 20 anos, em sua fase mais produtiva, entre 1953 e 1970, em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, praticamente incógnito.

Zhang Daqian (“Da Qian” em chinês significa “o grande universo”), é também conhecido, em razão da antiga transcrição fonética do mandarim para as línguas românicas, como “Chang Dai-Chien”. Ele nasceu em 1899, em Neijiang na província de Sichuan (sul da China), filho de uma abastada família de comerciantes de tecidos e sedas de Chengdu (maior cidade e capital de Sichuan).

Em razão dos negócios familiares foi enviado para estudar tinturas e os processos de tingimentos de tecidos em Kioto, no Japão, quando então descobriu sua vocação para a pintura. Além de pintor, foi também mestre na arte da caligrafia chinesa e um exímio perito, identificador e colecionador de antiguidades chinesas.

Depois de passar pela Argentina, Zhang Daqian emigrou para o Brasil em 1953. Quando chegou no porto de Santos, e de lá partiu para Mogi das Cruzes, a paisagem de montanhas verdes e o clima do local fizeram com que imediatamente Zhang Daqian percebesse na cidade do interior paulista semelhanças com Sichuan, sua terra natal.

Decidiu então permanecer em Mogi das Cruzes, onde construiu no atual distrito de Taiaçupeba sua morada. Zhang Daqian (do mesmo modo que Claude Monet em Giverny) construiu como parte da sua residência em Mogi das Cruzes um jardim. Um jardim taoísta que recebeu o nome de Jardim das Oito Virtudes (“Pai De Yuan”).

Com a ajuda de imigrantes japoneses que viviam em Mogi das Cruzes, Zhang Daqian adquiriu centenas de mudas de azaleias compradas em Atibaia, assim como inúmeras mudas de árvores de caqui e espécies de pinheiros asiáticos, e comprou centenas e centenas de pedras de diferentes formatos e tamanhos em Campos do Jordão, e que foram transportadas e, – minuciosamente –  colocadas nos locais determinados pelo artista.

Além do jardim – como parte do paisagismo – Zhag Daqian planejou e acompanhou a execução e construção de um lago artificial: “o lago dos cinco pavilhões (Wu Ting Yu).

O nome do jardim que Zhang Daqian construiu em Mogi das Cruzes – “Pai De Yuan”, Jardim das Oito Virtudes – tem sua origem na filosofia taoísta. E segue o princípio taoísta segundo o qual todo ser humano deve observar em sua existência a prática de oito virtudes:

1.Xiào (respeito ou piedade filial: respeito aos pais e ancestrais), 2. (o cumprimento dos deveres/a responsabilidade), 3. Zhōng  (a lealdade/a devoção/a honestidade), 4. Xìn (acreditar/ter confiança/fé), 5. Lǐ (boas maneiras, bons modos e etiqueta), 6. Yì (retidão/cavalheirismo/polidez), 7. Lián (integridade e honra), 8. Chǐ  (frugalidade, simplicidade/senso de vergonha).

No jardim, que foi elaborado como uma obra de arte por Zhang Daqian, e como é de praxe nos jardins chineses, nenhum dos seus elementos (espécies de plantas utilizadas, o formato e o tamanho das pedras, o lago e o uso do elemento água como parte do paisagismo) eram desprovidos de significados.

Para efeito de explicação observemos um único caso: o uso das árvores de caqui como um dos principais elementos do paisagismo. A escolha dessa espécie de árvore se deve ao fato de que o caqui, além de ter uma origem asiática, é uma fruta para a cultura chinesa repleta de sentidos.

O caqui (shì)  está ligado à ideia de sucesso nos negócios e nos empreendimentos. Trata-se de uma fruta de cor vermelha (que na China tem o significado de alegria e de prosperidade).

E, no caso de Zhang Daqian, o caqui além do mais alcança outros sentidos, os quais estão ligados à biografia do artista, pois o caqui – do mesmo modo que Zhang Daqian – é originário da China, foi levado ao Japão e aclimatado naquele país (à semelhança do artista que, nascido na China, se “aclimatou” no Japão, em Kioto, em seus tempos de estudante). E, depois, essa fruta de origem chinesa, do mesmo modo que Zhang Daqian, chegou ao Brasil.

Na China costuma-se presentear os recém-casados e os homens de negócios com caquis como meio de desejar-lhes prosperidade.

E costuma-se também plantar as árvores dessa fruta nos templos porque o caquizeiro está ligado à ideia de saúde e longevidade (essa árvore, por exemplo, foi plantada em meio dos milhares de pinheiros do parque do Templo do Céu, em Pequim) porque – segundo a crença chinesa – essa árvore possui quatro virtudes: a longevidade e a durabilidade (a árvore pode viver tanto tempo quanto o pinheiro), ela oferece abrigo e alimento para os pássaros, propicia sombra para os humanos e é uma árvore resistente às pragas e imune às doenças.

Mas, por que apesar de ter vivido e ter construído um grande jardim taoísta em Mogi das Cruzes, Zhang Daqian permaneceu praticamente incógnito enquanto viveu no Brasil?

Os argumentos recorrentes utilizados no Brasil para justificar o não reconhecimento de Zhang Daqian (e o quase desprezo pela sua arte) no período em que ele viveu em Mogi das Cruzes tendem a culpabilizar o próprio artista.

Segundo boa parte da crítica brasileira, Zhang Daqian foi ignorado porque permaneceu isolado na cidade do interior paulista e porque não se comunicava senão em chinês. Trata-se de uma explicação simplória e politicamente ingênua.

Se verdade fosse que o “isolamento” do artista em Mogi das Cruzes tivesse impedido a aproximação de críticos e também do público brasileiro do trabalho de Zhang Daqian, como explicar então que nesse mesmo período, ao contrário do Brasil, sua obra fosse admirada (e muito disputada) nos Estados Unidos, na Europa e no Japão?

A distância de Mogi das Cruzes não impediu que os galeristas, marchands, críticos de arte, diretores de museus, curadores, editores de livros e revistas de arte internacionais, e também artistas de diferentes naipes e prestígio (entre eles um dos maiores ícones da arte do século 20, Pablo Picasso), estudiosos e entusiastas da arte de cantos diversos da Europa, dos Estados Unidos e do Japão mantivessem contato e tivessem programado a divulgação do trabalho de Zhang Daqian pelo mundo durante o período em que ele viveu em Mogi das Cruzes.

A suposta incapacidade do artista se comunicar senão por meio da língua chinesa não impediu que Zhang Daqian fosse constantemente convidado para exposições individuais fora do Brasil, ou que seus trabalhos tivessem um grande sucesso de venda nas galerias estrangeiras e que, com a venda dos seus trabalhos na Europa, nos Estados Unidos e no Japão o artista conseguisse sustentar a si, sua família (que não era pequena) e fazer a manutenção do Jardim das Oito Virtudes em Mogi das Cruzes.

Se fosse tão isolado assim (e incomunicável) Zhang Daqian não teria o seu nome registrado nas listas telefônicas do Brasil daquela época para ser contatado por qualquer potencial interessado.

E o artista chinês vivia cercado por filhos, netos, alunos e discípulos que falavam o português do mesmo modo que o chinês e que poderiam (e puderam) servir de mediadores e intérpretes aos potenciais interessados em sua arte.

Se verdade fosse que Zhang Daqian vivera isolado e incomunicável durante sua permanência em Mogi das Cruzes, como explicar – então – que ele tenha sido um dos artistas da Bienal de São Paulo em 1965, ou que o Masp tenha organizado uma exposição de seus trabalhos em 1966?

A verdade é que a China e a cultura chinesa sempre foram (e ainda permanecem) ignoradas por grande parte dos brasileiros e, especialmente, pelos governantes, pela elite econômica e intelectual do Brasil.

Em que pese alguns trabalhos de intelectuais importantes como Gilberto Freyre, a China e os chineses sempre foram tratados com desdém no Brasil: como algo exótico, um corpo estranho. E não raro com o uso de falsas simetrias com o Japão e com os japoneses (e com o preconceito enraizado e largamente difundido, segundo o qual “os asiáticos são todos iguais”).

Depois da Revolução Comunista de 1949, a situação agravou-se ainda mais, pois a China e os chineses tornaram-se para a elite brasileira (mais do que um lugar e um povo ignorados) um tabu.

No Brasil, preconceito ideológico, suspeição e medo, mais o sentimento de ameaça, a ignorância e o racismo ainda pairam em torno da China e dos chineses sem muita diluição, mesmo depois dos 120 anos da chegada dos primeiros imigrantes daquele país em terras brasileiras.

E o destino do Jardim das Oito Virtudes em Mogi das Cruzes é uma metáfora potente do modo como o Brasil tem se relacionado com a cultura chinesa.

Em 1969, o jardim de Zhang Daqian foi desapropriado pelo governo brasileiro de modo unilateral. Não houve nenhuma possibilidade de discussão ou de negociação.

A razão de tal medida dos governantes brasileiros (a desapropriação do Jardim das Oito Virtudes durante a ditadura militar) foi a de que a propriedade de Zhang Daqian teria que ser alagada pelo represamento do rio Jundiaí para a construção de reservatórios de água do sistema Alto Tietê.

Não houve nenhuma discussão ou possibilidade de negociação para se verificar se existiriam outras alternativas técnicas que pudessem evitar a destruição do Jardim das Oito Virtudes. Jamais sequer houve a cogitação de se transferir o Jardim das Oito Virtudes para um outro terreno, ou a compreensão de que o jardim de Zhang Daqian não era uma simples propriedade rural, mas uma obra de arte construída por um dos mais importantes artistas do século 20.

Encurralado, Zhang Daqian deixou o Brasil em 1970. Foi viver na Califórnia, na cidade de Carmel, onde permaneceu até 1976. O artista ainda voltou para o Brasil para rever as ruínas do seu jardim pela última vez em 1973 (consta que recolheu alguns seixos do terreno e levou consigo como lembrança).

No ano de 1976, Zhang Daqian retornou para a Ásia. Nos jardins da sua casa em Tapei (que hoje é um museu) rearranjou as pedras brasileiras que havia recolhido do seu Jardim das Oito Virtudes na sua última passagem pelo Brasil e por Mogi das Cruzes no ano de 1973.

E quando morreu, em 1983, aos 84 anos – eis a ironia – a represa do rio Jundiaí ainda não havia sido construída e as águas não tinham ainda inundado e encoberto o terreno do jardim desapropriado.

No ano de 2014, quando uma grande seca causou a maior crise hídrica do Estado de São Paulo, o nível das águas da represa do sistema Alto Tietê baixaram tanto, que parte da memória que havia sido apagada, reapareceu.

As pedras e parte do terreno do Jardim das Oito Virtudes ficaram visíveis por várias semanas. E chegou a ser divulgada a informação de que o Masp teria encontrado, em sua reserva técnica, uma até então desconhecida pintura de Zhang Daqian (doada pelo artista ao museu paulistano em 1966, quando ocorrera uma exposição dos seus trabalhos), uma pintura avaliada em 800 mil dólares (o museu não confirmou essa informação nem expôs esse trabalho).

Nenhum dos outros grandes museus de arte de São Paulo (MAC, MAM, Pinacoteca) possui em seus acervos obras do artista chinês que viveu e trabalhou tão próximo, mas que foi tratado com incrível distanciamento.

O MAM chegou a fazer, entretanto, uma exposição de trabalhos de Zhang Daqian em 1971, quando ele já estava a viver na Califórnia.

Recentemente, foi anunciado que autoridades do governo chinês, em convênio com os administradores da cidade de Chengdu, decidiram reconstruir o Jardim das Oito Virtudes na capital de Sichuan, em um terreno com os mesmos seis alqueires do original brasileiro.

Submerso nas águas do esquecimento no Brasil, apagado da memória e da história brasileira, o Jardim das Oito Virtudes do velho mestre chinês vai renascer na cidade onde ele viveu uma parte significativa da sua existência e onde estão as suas origens.

 

Carlos Alberto Shimote Martins morou em Pequim durante três anos e meio. Foi professor de Português, Cultura Brasileira e Literatura Brasileira na Universidade de Estudos Internacionais de Pequim (Beijing International Studies University/Erwai), no período de maio de 2010 a agosto de 2013. Foi o leitor escolhido para atuar naquela universidade como parte do Programa de Leitorado do Ministério das Relações Exteriores (MRE/Itamaraty) e Ministério da Educação (MEC/Capes)


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