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MÚSICA

Estrela do Jazz, compositor e instrumentista Charles Mingus completaria 100 anos em abril

Charles Mingus no concerto do Bicentenário, em 4 de julho de 1976, em Nova York. Foto: Tom Marcello/ WikiCommons

03 de abril de 2022 - 10h09

“Pornográfico!”

 

Por Renato Marques

“Pornográfico!” Não foram poucas as vozes que bradaram a expressão, após a leitura da autobiografia de Charles Mingus, Beneath the Underdog, no início dos anos 1970, em uma “América” conservadora, em choque com os reflexos dos movimentos Negro, Feminista e Hippie que, desde a década anterior, faziam barulho, questionando valores arraigados, como os que permitiram o alvorecer da Guerra do Vietnã, com baixos índices de contestação.

Aliás, a obra escrita em 1963 já havia sido rejeitada por editores preocupados com os excessos de palavrões e cenas de sexo, presentes no retrato da vida do baixista.

Porém, quando editado, o livro com mais de 300 páginas, provou que o afro-americano, nascido no Arizona, em 22 de abril de 1922, era capaz de trabalhar as letras da prosa com ousadia estilística, mostrando que o talento criativo não se restringia às notas musicais.

Sem nenhum temor em se desnudar, o livro descreve um homem em constante conflito interno, capaz de se apresentar nas primeiras linhas com uma declaração que serviria como pista, da mescla de elementos de esquizofrenia e genialidade: “Em outras palavras, eu sou três…”

A trajetória musical de Charles Mingus assevera a convivência de um talento fulgurante do Jazz, paralelamente a um homem que alternava o caráter dócil a ciclotimias violentas e assustadoras.

Em seus piores momentos de convivência com o alheio, Mingus expulsou espectadores que cochichavam durante os números, retirou do palco músicos que erraram em suas passagens e esmurrou seu parceiro de som, considerado o maior trombonista de todos os tempos, Jimmy Knepper, arrancando-lhe um dente e prejudicando sua embocadura para o restante da carreira.

‘Irascível e corpulento, Charles amedrontava. Porém, muito maior era o sentimento de admiração que despertava nos que o cercavam, nos músicos em todo o planeta, na imprensa especializada e no público.

Compositor genial, aperfeiçoou seus dotes oriundos de uma escolarização musical informal, com uma perseverança infindável, buscando sempre a perfeição do estilo, aliada à ousadia das inovações sobre os padrões clássicos.

Se autodeclarava um músico forjado na base do Gospel, único estilo permitido em casa durante a infância, e de Duke Ellington, descoberta da adolescência.

Iniciou-se tendo o trombone como instrumento, depois seguiu conselhos que o levaram ao violoncelo e finalmente ao baixo acústico.

A carreira profissional precoce o coloca em contato com mestres do Swing, adapta-se de forma excepcional na transição para o Hard Bop e Bebop, e nos anos 1960, incursiona brilhantemente pelo Free Jazz, demonstrando ser um artista flexível e grandioso.

Se a qualidade na execução do instrumento era inegável, tornando o seu baixo presença constante no mesmo palco que lendas como Louis Armstrong, Bud Powell, Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Duke Ellington, dentre outros, foi na composição que Mingus alçou-se à condição de estrela de máxima grandeza no panteão jazzístico.

Quem não conhece a sensualidade explícita de Goodbye Pork Pie Hat, a crítica social pungente em Fables of Faubus, ou a mistura de influências européia, latinoamericana e estadunidense, na potência sonora de Ysabel’s Table Dance, precisa se inteirar, para poder vivenciar a grandeza do que Charles intitulava Mingus Music, experiência sonora que transcenderia ao próprio Jazz.

O centenário de Mingus destaca o quão atual é sua música e suas percepções do mundo. Em sua obra nota-se a preocupação com o papel do negro na sociedade em transição dos anos 1960, nos Estados Unidos.

Oriundo de um lar onde o racismo se apresentava na fala do próprio pai, que devido a um colorismo, fruto da miscigenação, enxergava-se como branco, Charles Jr, carregou por sua existência a noção de valorização da raça, negando os ensinamentos paternos eivados de ignorância. 

No transcorrer da carreira, a partir de Pithecanthropus Erectus, álbum de 1956, construído a partir de uma contundente crítica à escravidão, gerou uma forma, quase um método, de abordar a execução das obras.

Compunha pensando nos executores, de uma maneira quase pedagógica, visando extrair daqueles que o acompanhariam durante o show e/ou gravação, o que de melhor possuíam, ressaltando suas individualidades, com foco em suas personalidades.

Combinava, com cada um deles, uma forma de tocar em que a liberdade era o tema e passava as frases e acordes dos arranjos oralmente a cada um, ao invés de fazê-lo de forma escrita.

As improvisações se sucediam de uma maneira harmoniosa, possibilitando a excelência de cada companheiro de palco. Essas experiências dialogaram diretamente com a formulação do Free Jazz, que nascia paralelamente, pelas mãos de outros músicos.

Mingus partiu cedo, aos 56 anos, minado pela Esclerose Lateral Amiotrófica, que primeiro impediu que ele continuasse a dedilhar o baixo acústico e gradativamente foi ceifando as demais possibilidades de vida.

O compositor, instrumentista, afrodescendente consciente das iniquidades que sua terra natal proporcionava aos seus iguais, deixou como legado, para ser admirado pelas gerações futuras, as gravações, partituras e letras traçadas em livro.

Relembrá-lo é um exercício fascinante de culto estético e sagração de uma era. 

 

Renato Marques é professor, humanista e contramajoritário.


Comentários

Celso

03/04/2022 - 17h09

Excelente abordagem sobre a vida e obra desse incrível músico que, como foi comentado acima, nem sempre foi compreendido

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