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VISÃO PENTECOSTAL

Papel de Michelle na campanha de Bolsonaro é de mulher subalterna que sempre apoia marido

30 de agosto de 2022 - 11h15

“Mulher virtuosa, quem achará?” O papel das mulheres, segundo o cânone de religiosos e do moderno conservadorismo

 

Por Elisa Rodrigues

Enquanto em jornais impressos, na web e na TV aberta pipocam imagens e falas da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, participando de cultos evangélicos em clamor pela reeleição de Jair Bolsonaro, atual presidente do Brasil, canais da mídia alternativa também demonstram interesse nesses episódios, mas apresentam maior preocupação com a adesão pentecostal à política assim como feita por Bolsonaro. Num e noutro caso, a publicização dessas cenas parece ignorar o que as atravessa e para o quê, eu gostaria de olhar com cuidado a fim de tentar compreender melhor essa tríade religião-política-gênero.

Quero inicialmente apontar que há duas dimensões que interseccionam nesses episódios em que Michelle Bolsonaro aparece publicamente orando com mãos erguidas ao alto, pela reeleição de Bolsonaro e ou expulsando demônios de salas do Palácio do governo que, aos meus olhos, explodem. De um lado, religião e seu discurso e, do outro, política e seu jogo. No meio disso, ou seja, na intersecção, estão as mulheres ou certas construções sociais que designam o que seria ou não ser mulher, o que seria próprio o não de mulher e o que seria ou não papel da mulher.

E é no sentido de olhar para essa performance ou tipo de mulher na intersecção entre religião e política que aparece já no título desse artigo, o verso: “Mulher virtuosa, quem achará?”. Primeiro, porque é uma citação da Bíblia e, portanto, do domínio religioso cristão, com frequência invocada pelos religiosos com a função de cânone para balizar vidas de mulheres. Aliás, cânone de cânon, significa régua. Daí dizer que a vida de religiosos cristãos é traçada pelas linhas definidas pela tradição bíblica.

Segundo, porque na qualidade de cânone, a Bíblia determina aquilo que na tradição cristã seriam adjetivos desejáveis para as mulheres. Tais adjetivos seriam a capacidade de cuidar, de dar suporte ao marido e de educar, especialmente, os filhos e as filhas. De acordo com esse entendimento bíblico transformado em uma tradição religiosa é que Michelle Bolsonaro chama a atenção do público em geral e dos evangélicos especificamente: por apresentar-se como uma mulher virtuosa. Ela não apenas cuidaria de seu esposo, como ficaria ao lado dele dando-lhe suporte e orando por ele, nos dias de glória e nos dias de perseguição. Em outras palavras, caberia a ela estar a serviço de seu esposo, ele, espécie de dominador, ela, a dominada.

Isso, é valioso para evangélicos pentecostais. Eu poderia dizer na linguagem acadêmica que isso é capital simbólico, mas, trocando em miúdos é uma poderosa imagem que comunica muitos significados. Sobretudo, porque a imagem da primeira dama ao lado de seu marido representaria a realidade de um tanto de mulheres evangélicas, que em suas igrejas “intercedem” diariamente pelos seus maridos, namorados, amantes, filhos e filhas. E elas fazem isso porque são ensinadas a fazê-lo, pois a elas é dada essa função: a de desempenhar o papel de auxiliadoras dos homens. Não à frente, tampouco ao lado. Mas atrás: submissas e sem protagonismo.

É, às vezes, contraditório. Afinal, a elas é dado algum reconhecimento por estarem a serviço e muitas delas sentem-se compensadas por esse “reconhecimento”. Mas, para algumas feministas, inclusive mulheres cristãs feministas, esse reconhecimento poderia ser suspendido, visto que em espaços de poder publicamente conhecidos, elas nem sempre aparecem. Senão, ao lado de algum “grande homem”.

Retomando a coisa dos significados atribuídos a certas condutas de mulheres cristãs no meio pentecostal, no léxico religioso cristão evangélico, a intercessão – isto é, a oração pelas pessoas que ama –, é considerada um meio pelo qual se abre a possibilidade de que Deus aja sobrenaturalmente na vida das pessoas, salvando-as, libertando-as, regenerando-as e, enfim, dando-lhes vitória nas batalhas que diariamente lutam. E, neste sentido, a corrida eleitoral é entendida no meio evangélico como uma batalha espiritual entre os que representam os valores cristãos, “nós”, e os que representam a ideologia da esquerda, “eles”, os comunistas.

Ora, batalhas são travadas quando se sente que existem ameaças, sobretudo, ameaças a uma forma determinada de ver e estar no mundo. Isso não é apenas teologia, é também política em nome da qual se justificaria o levante, a luta, o “bom combate” se preciso armado. Aqui se verifica a materialidade da religião: a batalha espiritual pode concretizar-se numa luta real, que para alguns crentes corresponderia até mesmo na necessidade do Golpe, caso seu candidato não seja reeleito.

Seguindo essa lógica, se Bolsonaro corre o risco de perder as eleições, nada mais significativo de que nessa hora de crise, coloquem-se em seu favor mulheres em oração. A começar por sua esposa: bela, recatada e do lar.

Há algo nessa compreensão que tem sido sistematicamente desprezado pelos analistas da ciência política e da comunicação. A imagem da esposa dedicada, bem como o discurso religioso que ela reproduz e que se origina dos púlpitos evangélicos masculinos, fortalece a autoridade e poder de alguns homens-escolhidos sobre pessoas consideradas subalternas. Essa imagem reitera algo da força pujante do homem-branco sobre mulheres e sobre pessoas inferiores a eles, que seriam todas não brancas, não binárias, de distintas etnias, raças e culturas. Na lógica pentecostal, esse tipo de homem é eleito pelo próprio Deus para representa-lo na missão de guiar o “povo escolhido” à salvação.

Povo que é formado não por todos e todas, mas pelo “nós” cristãos, em detrimento de todas as pessoas do outro lado: as pessoas do lado “deles”. Ou seja, não é complicado compreender que por trás dessa lógica classificada e atribuída aos pentecostais como beligerante, combativa e intolerante alinha-se perfeitamente o conservadorismo misógino do atual presidente.

Vale destacar ainda, que explicar essa lógica pode nos ajudar a entender, por exemplo, a negativa explosiva de Jair Bolsonaro ao título que recentemente lhe foi atribuído por um Youtuber. Se o atual presidente preenche todos os requisitos de um “macho alfa”, isto é, que exerce a liderança de modo arbitrário, centralizador, misógino, homofóbico, intolerante, agressivo etc., nada mais natural que sua reação violenta ao título “Tchutchuca do Centrão”.

Deveria ser engraçado, mas não é. Bolsonaro somente reagiu a esse nome de modo tão hostil e violento, porque a imagem de uma “tchutchuca” está colada à imagem de uma mulher. Uma mulher que na cultura popular presta-se ao serviço de homens que a dominam e fazem dela o que querem. Não é assim a voz de comando dada no funk do Bonde do Tigrão: “Tchutchuca, vem aqui pro seu tigrão”? Pois é, Bolsonaro Tchutchuca do Centrão seria um presidente rendido aos homens-políticos-conservadores-liberais da elite brasileira, disposto e disponível para qualquer papel, desde que bem recompensado.

Isso até que explica. Mas não justifica. Especialmente, porque se a gente ironizar essa cena – desde o título até a reação de Bolsonaro e seus seguidores – a gente corre o risco de ignorar o conjunto de pré-conceitos que estão por trás desse apelido: afinal, por que a gente quando quer inferiorizar alguém atribui a essa pessoa características e ou nomes que, supostamente, seriam de mulher? “Mulherzinha”, “cocotinha”, “tchutchuca”, todos nomes atribuídos a homens ou pessoas que seriam fracas, emotivas, facilmente dominadas, irracionais e, portanto, inferiores.

Essas pessoas, para Bolsonaro e para seus apoiadores, não serviriam para liderança, tampouco para o exercício de funções ou papéis sociais de destaque e autoridade. No máximo, elas deveriam ocupar posições figurantes, ou seja, de nenhum protagonismo ou importância. Bolsonaro não quer ser tchuthuca, porque no seu entendimento esse nome o inferioriza ao iguala-lo às mulheres, pessoas de uma classe inferior. Ele não quer estar a serviço, na intercessão ou nos bastidores. Ele quer ser “o” cabeça (essa é outra imagem bíblica usada para referir-se ao que papel de homem, seja na família, na igreja ou até na política).

E, enfim, uma conclusão: do cânone bíblico ao moderno conservadorismo elitista e misógino, a mulher seja virtuosa ou tchutchuca serve apenas para ser coadjuvante, uma adjutora sempre disposta e disponível a ajudar o seu macho. Nisso residiria o seu virtuosismo cristão tão aclamado por alguns religiosos pentecostais, em especial, aqueles e aquelas aos quais Bolsonaro se alinha. Nisso residiria a fúria de Bolsonaro, que não quer perder essa corrida eleitoral, não quer passar a faixa presidencial, tampouco ter sua imagem colada à figura de uma mulher. Nem mesmo a de uma mulher virtuosa.

 

Elisa Rodrigues é doutora em Ciência da Religião e em Ciências Sociais e professora no Departamento de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora


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